Carta à Rainha Louca de Maria Valéria Rezende é um livro primoroso.
De forma muito bem escrita e corajosa a autora romanceou o que acontecia à mulheres no Brasil à época colonial. Isabel, a protagonista, escreve à Rainha Louca lhe pedindo ajuda ao mesmo tempo em que expõe e critica com finas ironias a própria Coroa e a Igreja Católica que àquela época frequentemente se confundiam uma na outra.
O uso que autora faz de escrever apartes maiores ou menores como borrões, tachados, foi muito inteligente e dá a esses trechos enorme importância. Sem querer adiantar o final, deixo abaixo alguns momentos de crítica e fina ironia.
... porque em todas as condições, aqui nestas colônias, em África, nas Índias, na China ou no Reino, no paço real ou na mais pobre aldeia do Vosso Império, estão submetidas às leis dos homens que muito mais duras são para as fêmeas e só para elas se cumprem, pois todos os seus pais e irmãos e maridos e filhos e varões quaisquer, clérigos ou seculares, só as querem para delas servirem se e para dominá-las como aos animais brutos se faz, blasfemando vergonhosamente ao emprestar lhe a Deus Nosso Senhor tão cruel desígnio (pos.42)
Mas eu, por mim, digo que mais loucas e enganadas pelo Maligno são elas que se deixam prender, maltratar e tosar como ovelhas, caladas, que a tudo se submetem. Mais loucas ainda estão as que deviam ser as mais dignas, aquelas que têm autoridade neste Recolhimento, fazem se chamar Madres pelas demais e deviam protegê-las, conhecer seu lugar e pelejar pela verdade, mas fingem júbilo quando aqui aparecem os lobos vorazes que se apresentam como seus benfeitores e, sem lutar, deixam esvair se a vida se muitas vidas tivessem. Loucas, tolas, sim, são as que jamais gritam. (pos.54)
Porque nestas colônias que se dizem Vossas, é assim que se vive quando não se tem rendas, tratados os cristãos pobres como se fossem menos do que os animais de trabalho. (pos.67)
E de nada lhes adianta queixarem se aos oficias do Reino, nem ao bispo ou aos frades, porque no mínimo lhes farão ouvidos moucos, e, se calhar, antes as preferirão despidas para nelas satisfazer sua luxúria do que vestidas e guardadas na inocência. (pos.86)
A única razão que me ocorre para que assim procedais é a de que se desnudas estiverem as mulheres, mais lesto as emprenharão os machos e mais se multiplicará o número de Vossos súditos reinós para garantir vosso domínio sobre estas terras e de mãos para arrancar delas a riqueza que sob elas se esconde, para a glória de Vossa Coroa e de Vossa Igreja, pois até a nossos remotos ouvidos chegam as notícias de quão custoso é para a Coroa manter, como manda a tradição estabelecida por Vossos nobres ancestrais, o fausto e a constante movimentação de Vossa Corte por todo o Reino de modo que por toda a parte se lembrem Vossos súditos de Vosso tremendo poder e que Vossos vários palácios e castelos e terrenos de caça não percam nada da magnitude que lhes transfere a presença da Família Real, com sua riqueza, de sua Corte e dos altos dignitários de Vossa Igreja. (pos.98)
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