Num ponto do globo terrestre mais ao sul dois rapazes escapam de um lugar sinistro. Uma camionete caindo aos pedaços anuncia que chegou. Eles entram no carro e fogem dali.
Os irmãos nasceram na Terra da Seca, a mesma terra que virou deserto de tanto o sol queimar. Foram separados pequenos. Um com o pai outro com a mãe seguiram destinos diferentes.
Em um lugar abalado por uma guerra na fronteira entre dois países foi criado Lucas, 15 anos, menino impronto como um reboco de parede. O mais velho viu a mãe casar com um empresário do ramo de gemas preciosas. Virgílio pegou carona na beleza de esmeraldas e diamantes, tem 17, e é bonito como a noite.
Durante a segunda metade do fim do mundo, e magicamente, foram colocados juntos no mesmo Centro de Aprimoramento do Caráter. Conheceram-se sem se conhecer e por acaso ficaram amigos durante os passeios ao jardim. Já se vão 4 meses de convívio.
Localizado na América do Sul o Centro é um reduto da ciência comportamental ou do que restou dela. Para chegar até lá o esforço é enorme. Acontece que ruas foram destruídas, pontes impedidas, cidades abandonadas, tudo na tentativa de salvar a humanidade. Virgílio e Lucas viajaram separados. E estão juntos neste momento.
- Quem vê o mar diminui de tamanho, disse Virgílio. - Nunca me imaginei maior que um sorriso.
- Oxalá, guardião das coisas imponderáveis, como se alguém ligasse para os seus sentimentos, disse Lucas não com indiferença.
- Sou inocente. Nasci inocente como uma promessa...
Os meninos riram como pizza esparramada. Muitas vezes, sem saber, eles cantam pequenininho a mesma música intensa no mesmo segundo. Foi o que aconteceu quando se despediram naquela noite.
Capítulo 2
Antes global e moderno, o planeta passou por pandemias virais que varreram muitas vidas a partir de 2020. Bactérias também deram sua contribuição à limpeza. O homem?! Foi quem destruiu o mundo primeiro. Antes global e moderno, grandioso e opulento, o planeta agora é segmentado e rural, excetuando cidadelas espalhadas pelos continentes ricos - o conceito de riqueza mudou bastante. Sobretudo para as pequenas aldeias falta tudo. Falta dinheiro, falta chuva, amor não existe. Os homens seguem, potencialmente, habitando a desordem. E aí, bem no meio, é que mora o Centro.
Com o coração vulnerável Lucas foi encaminhado pra lá pelo modelo de Estado que ainda vigora. O menino fazia bombas caseiras e por lutar contra os abusos dos novos conquistadores foi, digamos, poupado de um cárcere mais atrevido e o Centro de Aprimoramento do Caráter foi, digamos, um gesto de entendimento das autoridades para com ele.
Virgílio, por sua vez, foi enviado pela família que mantém crença infinitamente maior que a do garoto no tratamento. O que se sabe do mais velho dos irmãos é que o currículo sexual impressiona até no futuro.
Em uma noite ininterrupta em que puderam ver as estrelas até brotar o dia os meninos checaram os últimos detalhes do Plano. Não poderia haver presente melhor nem sorte maior do que terem se juntado.
- Eu sempre quis crescer, sempre desde pouco tempo, mas desde que me lembro, disse Lucas que aqui era quem filosofava.
- Para mim você precisa diminuir, não crescer. Virgílio, estranhamente, salgava tudo à sua volta quando formulava seu próprio ser.
De volta ao dormitório branco e sem janelas, Lucas entregou-se a algo inesperador. Acostumado a contemplar o abismo, o garoto adquiria um peito transparente, um coração leve e até um riso na cara.
Capítulo 3
Duas semanas depois ele explodiu a bomba. Foi no dia da Festa das Fitas, perto do mastro de fitas coloridas que lembrava, vagamente, o mastro das festas religiosas de um tempo distante.
O barulho ecoou formando um alvoroço no pátio principal. Centenas de jovens correram de um lado para outro com raiva sincera e pavor. Não houve feridos.
As explosões aumentaram, aumentando a desconfiança dos garotos de que haviam mais como eles. No estupor do medo que se instalou no pátio do “presídio”, os “carcereiros” foram incapazes de controlar a comoção e começaram a correr feito os detentos.
Com a explosão, o portão de entrada do Centro desmoronou e de algum modo a camionete parou ali, dirigida por um motorista que ouvia um rock inconformado saído de uma fita K7 em péssimo estado.
De dentro do carro o barulho das bombas misturou-se ao dos solos de guitarra elétrica deixando o motorista meio zonzo. Ele encostou o carro no local combinado.
- Pai, disse Lucas, vamos, vamos, vamos.... Saíram de lá voando.
Sob o sol-vermelho-fogo do sábado-fugidio-libertador os três seguiram viagem por um longo tempo sem nada falar, até que a emoção fingiu calma e na vastidão sem amanhã daquele mundo sem chance uma canção surgiu entre eles, de repente, e no instante exato, baixinho primeiro, para depois cantarem alto a mesma música.
Fonte: blog Natascha Duarte
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