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Abobrinhe-se, Natascha Duarte

Não é por acaso. Deve ser a pandemia. O fato é que coisas estranhas estão acontecendo no meu

quintal. Primeiro foi um pato no telhado. Surgiu com bondade e se colocou altivo em primeiro plano e acima de nós para que todos o vissem. Branco, penas plenas e boniteza. Ficou quanto quis e se foi do jeito que veio. E teve a galinha, porque a galinha briga com o galo e vem pra cá refletir se volta para ele ou continua brigada fazendo drama. As galinhas não conto mais, aparecem tanto do lado esquerdo quanto do direito do jardim, vêm do Seu João ou do Seu Sebastião, são já minhas amigas as magricelas, e são evoluídas e pouco amadas, como algumas mulheres que conheço. Para uns as galinhas são apenas comida, para uns as mulheres também. Pouco depois veio novo pato, nova galinha, um gambá e dois ratos. Dos últimos não ouso tecer palavra (Clarice em Perdoando Deus faz isso por todos os seres do mundo). Sorte a minha ter gatos e a Clarice. Sentado ao pé de uma jabuticabeira o pato número dois pensava em como dormir, e foi assim que pegou no sono - de olhos bem abertos. Pasmei e fotografei. Mas a foto não mostra o esplendor do bicho. A Eleanor, uma personagem literária pouco conhecida, postula que os humanos deveriam morar no céu para formarem juízo enquanto a terra fosse dos bichos. Talvez o mundo fosse doce como jamais foi com homens nem mulheres no seu comando. Eu acrescento ao pensamento ultra transformador da personagem que os homens e mulheres deveriam se redimir de seus pecados vindo à Terra como os animais que um dia humilharam. Mas basta disso... Muitas invasões e devaneios depois, um espécime do reino vegetal surgiu por sobre o muro. A rama fina e retorcida se esparramou pela grama como se fosse cama dela. Cortar me daria um prazer enorme nada mais vendo no início além de mato, mas surgiu uma flor amarela, e um sentimento em mim. Flor linda, abaixo de uma folha igualmente bela e grande o suficiente para poupar a delicadeza amarela do calor da insolação do meio dia. Não cortei o que vivia. Nasceu o fruto. O pé de abobrinha, sem graça por ter invadido, foi ficando. O tronco da conexão entre a planta de lá e a de cá perdeu força, está seco porém não inerte, e hoje o pé de cá quase que inteiro vive na grama, independente da mãe planta do lado vizinho. Colhemos algumas abobrinhas, bem poucas se for sinceridade o que esperam de mim; romantizo até não poder, mas uma hora desisto de ver a beleza inexorável de todas as coisas e surto. É folha que não acaba mais, flor por tudo que é canto e abobrinha mesmo que é bom tem muito pouco. Umas 3 foram colhidas das quais duas mofaram ainda no pé me fazendo perder a paciência que reside no canto claro do meu existir. Depois do surto: Não consigo romper o laço. A abobrinha virou minha “ideia fixa” machadiana, não a tiro da cabeça, a possuo em pensamento o tempo todo e ela me faz perder a razão a ponto de me obstinar em salvá-la custe o que custar. Não desejo igual obsessão a ninguém. Pé de verdes coisinhas sem muito gosto, é verdade, abobrinhe-se; se não, não vai ter jeito, não! Esperando juntar abobrinhas com molho de tomate e queijo parmesão para, na churrasqueira, a massa na forma, a forma na grelha, e tudo abafado por uma tampa, fazer uma bela pizza uruguaia.

Fonte: blog Natascha Duarte

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