Estava
acostumada aos homens que tinham medo. Que pediam que ela se despisse, antes de
tudo, e esfregasse a pele com sabão em um banheiro de corredor. Que deixasse lá
fora os sapatos, escovasse os dentes, as gengivas e não os beijasse na boca.
Ela nunca os beijava na boca — e não era por ser puta. É porque talvez nem
soubesse direito como era, a dança de línguas e lábios, acendendo com saliva as
fornalhas do corpo. Eles diziam: “eu quero me proteger”. Ela gostaria de dizer
que isso tudo era uma grande ironia. O que há para proteger em um mundo em que
não é possível beijar?
⠀⠀⠀⠀⠀Ainda era possível tocá-la com as mãos em luvas de
borracha, entretanto. Ainda era possível bater e apanhar, ganhar uma chupada
envolta em plástico, eram tão desacostumados com a pele que duravam um tempo mínimo,
quase nada. Quando terminavam, as calças arriadas, corriam logo para o
banheiro, desinfetavam o corpo trêmulo em água escaldante, mandavam-na embora
com o dinheiro esterilizado em um saco de papel, sem a dignidade de um diálogo.
Os homens eram todos uns covardes, mas ela ainda sentia falta.
⠀⠀⠀⠀⠀Estava cheia das porqueiras da rua que não mereciam
nem um abraço, é verdade, mas ignoravam que ela talvez também esperasse por uma
despedida afetuosa, um carinho meio macio que se pode fazer com as palavras. Não
a viam como ser humano, e nem sabiam ser humanos. Estavam todos meio perdidos,
meio apavorados.
⠀⠀⠀⠀⠀Vingava-se quando saía com a cabeça rebentando ao
sol e o vento lambendo as vistas, faziam dias tão bonitos agora que as ruas
estavam vazias, era uma coisa linda, linda; mas eles eram privilegiados que não
podiam ver.
⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀Quando atendeu Romero, achou que seria assim, mais
uma visita programada para acabar rápido, entretanto ele não pediu que ela se
desinfetasse ao entrar na cobertura de vidro, nem estava interessado em sexo
blindado. Era um homem maduro, para não dizer velho.
⠀⠀⠀⠀⠀“Quantos anos você acha que eu tenho, Viviane?”,
ele perguntou no primeiro encontro, servindo-lhe vinho bom em taças de cristal
enquanto apreciavam Brasília lá de cima, silenciosa e seca como se não fosse
tão perigosa.
⠀⠀⠀⠀⠀“Uns... cinquenta?”
⠀⠀⠀⠀⠀“Quase. Quarenta e cinco.”
⠀⠀⠀⠀⠀Era mais do que o dobro do que ela já tinha vivido,
portanto bebericou o vinho, dando de ombros porque estava certa. Ele era velho.
Ele se lembrava.
⠀⠀⠀⠀⠀“É verdade. Eu me lembro. E é meio triste se
lembrar de uma vida que não vai mais acontecer”, confessou, quando os
pensamentos da menina escapuliram.
⠀⠀⠀⠀⠀Ela não tinha pena, não desses pássaros engaiolados
e ricos que viviam no topo de colinas de aço, saudáveis e vivos, sobretudo
porque conhecia os ratos. Ratos como ela, que eram obrigados a sair para a rua
e podiam, a qualquer momento, cair doentes.
⠀⠀⠀⠀⠀Romero queria conversar, mas o atendimento virtual
não era suficiente, as garotas eram boas, ele confessou, entretanto sentia
falta de olhar nos olhos de alguém sem uma tela no meio.
⠀⠀⠀⠀⠀“É uma coisa que ninguém dá muito valor. O peso de
um olho no outro.”
⠀⠀⠀⠀⠀Viviane achou aquilo tudo muito poético e quis
guardar para anotar no caderninho onde escrevia seus pensamentos para a
posteridade, ciente de que também seria abatida a qualquer momento e a febre
faria escorrer sua existência pelo mesmo esgoto de onde tinha surgido. Quem
sabe a nova civilização que aparecer, quando descobrirem a cura, me encontre,
pensava. Quem sabe ela conseguisse se revelar para essas pessoas do futuro. Eu
existi. Eu estive aqui.
⠀⠀⠀⠀⠀Romero queria uma fatia da sua aventura. Queria
viver pela vida dela. Então pedia que contasse como era desbravar as ruas como
se não existisse um inimigo invisível. Ficava respeitosamente silencioso,
enquanto ela contava. Do Parque da Cidade tomado por mato; das pontes tombadas
pela água; e os passarinhos que vinham buscar comida em sua mão apenas porque
era tão raro aparecer alguém. Vez ou outra você via uma pessoa, caminhando
dentro de macacões emborrachados feito invasores de uma cidade radioativa.
⠀⠀⠀⠀⠀“Você não tem medo?”, Romero sussurrava.
⠀⠀⠀⠀⠀“Todo dia. Mas eu não posso me dar ao luxo de
esperar passar.”
⠀⠀⠀⠀⠀ Ele a admirava. E ela se envaidecia, tanto que
voltou para outros encontros, que sempre transcorriam no ambiente asséptico da
cozinha, separados pela distância de um balcão. “O que você fez hoje?”, ele
perguntava, enquanto preparava espaguete ao sugo e separava vinhos de sabor
amadeirado. E ela ia contando sobre suas aventuras e pequenas amizades: o
sanduíche de atum dividido com um porteiro amistoso, a perseguição a um
cachorro perdido na W3 Sul, o grotesco de uma mulher tomando sol pendurada na
janela (é tão engraçado quanto ver uma lesma sufocada de sal). Às vezes Romero
parava o que estava fazendo para escutá-la de cabeça baixa, e ela nunca sabia
se ele estava muito triste ou apenas levemente comovido.
⠀⠀⠀⠀⠀Ela sentia nele a tristeza e o cansaço, porque eram
tempos de tristeza e cansaço, e um dia disse que achava que ele era diferente.
⠀⠀⠀⠀⠀“Diferente como?”
⠀⠀⠀⠀⠀“Você não tem o mesmo medo de mim que os outros.”
⠀⠀⠀⠀⠀“É porque eu já vivi demais, como você diz.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Então por que não se arrisca? Por que não vem
comigo dar uma volta?”
⠀⠀⠀⠀⠀Ele a olhou profundamente, não como se estivesse
louca, mas como se estivesse sendo leviana. Como se a mera sugestão fosse um
horror.
⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que eu tenho medo do lado de fora, afinal”,
espantou o incômodo, com um sorriso forçado. “Nem todo mundo é como você, minha
pequena camicase.”
⠀⠀⠀⠀⠀Como todos os homens que ela visitava em suas prisões,
ele não queria perder o controle. Perto dele, no entanto, sentia algo
diferente. Uma espécie de comichão no umbigo, uma quentura meio borbulhante que
fazia amolecer os ossos. Via a si mesma vagando pelos endereços de suas visitas
com os olhos colados ao celular, esperando a ligação, vivendo pela expectativa
daquela companhia. Uma noite, sonhou que ele a abraçava.
⠀⠀⠀⠀⠀Em outra, sonhou que ele a beijava na boca.
⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que eu posso estar me apaixonando por você”,
disse, assim de pronto, surpreendendo-o com um corte rápido na conversa.
⠀⠀⠀⠀⠀Ele estacou, o rosto ensopado de espanto.
⠀⠀⠀⠀⠀“Acho que não é uma boa continuar vindo aqui”, ela
emendou, para aliviá-lo um pouco. “Vou parar.”
⠀⠀⠀⠀⠀“O que você quer que eu faça?”, a voz dele era um
sussurro pálido, e veio pelo menos três minutos depois do silêncio.
⠀⠀⠀⠀⠀Mais um covarde, mais um covarde.
⠀⠀⠀⠀⠀“Abre a porta.”⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀
⠀⠀⠀⠀⠀Em seus sonhos, ele não abre. Em seus sonhos, ele
sequer a deixa ir. Ele a abraça e a beija, ele pede que ela fique e que espere
com ele. Mas essa era a vida que estava a caminho de acabar. Essa era a
realidade. Ela não vai de elevador. Ela vai de escadas. Lá fora, o céu está
ridiculamente azul e, enquanto se afasta, lembra que o prédio dele tem a altura
das nuvens. Você pode ter saudades até das pessoas que te decepcionam, escreve
no caderninho, a caminho de casa, no mesmo metrô fantasma de sempre.
⠀⠀⠀⠀⠀“O que você está escrevendo?”, alguém pergunta.
⠀⠀⠀⠀⠀“Um diário”, responde sem pensar, nem erguer a cabeça.
“Para encontrarem quando eu morrer.”
⠀⠀⠀⠀⠀“Legal, tipo uma mensagem para o futuro?”
⠀⠀⠀⠀⠀Ele é um desses músicos de janela, percebe, quando
finalmente levanta a cabeça. Traz nas costas um violão e uma pequena caixa de
som com alças de couro. Um rato que faz serenatas.
⠀⠀⠀⠀⠀“É, tipo isso”, responde, enquanto ele larga os
pertences no banco e se senta sem pedir permissão. A perna dele encosta
levemente na sua. Consegue sentir o calor atravessando a roupa. Ficam em
silêncio enquanto o metrô segue seu curso, engolindo as entranhas da cidade.
Lado a lado.
Nascida
em 1991 em Planaltina de Goiás, Fabiane Guimarães trabalha com
comunicação e direitos humanos no Fundo de População das Nações Unidas, e criou
cedo o gosto pela leitura. Seu primeiro romance, Apague a luz se for chorar, será publicado em 2021 pelo selo Alfaguara.
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