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A Praia No Tapete,O Cavalo na Vassoura, O Mundo Inteiro Na Sala de Casa, Gregório Duvivier

     Não é fácil estar confinado com uma criança. Faz dois meses que minha filha pede, todo dia, pra ir à praia.
     Na primeira vez, tentei explicar que não dava. “Filha, tá rolando uma pandemia, como é que eu vou explicar, um vírus que…” — daí me lembro que ela tem dois anos de idade. 
     Tento resumir: “Não dá, é impossível”, e ela então começa a chorar, e lembro que é mais fácil explicar uma pandemia pra uma criança de dois anos do que dizer que “não dá, é impossível”.
     No desespero surge uma ideia. “Chegamos. Olha o mar ali.” E aponto o tapete azul. E ela vê o mar se erguer, e abre um sorriso. Basta.
     Desde então, quase todos os dias ela me diz: "Vamo pá paia?", e vai buscar o maiô, seu chapéu UV e sua cadeirinha de praia diminuta. 
     Espalhamos almofadas pelo chão, nossa areia improvisada, e então ela abre a cadeirinha em frente ao tapete azul, que faz as vezes do mar.
     Puxo uma cadeira e chamamos o moço do mate de galão. Pagamos com uma tampinha de cerveja. “O tôco”, ela lembra. E pego de volta a tampinha que eu mesmo fingi que tinha entregado. “Obrigado.” Um biscoito Globo pra cada um. Doce pra mim, sal pra ela.
     Contemplamos o mar: Hoje tá bravo, digo. Você tem coragem? Ela diz: Tenho. E mergulha no mar do tapete, gritando. “Olha, papai, um peixe!” E ergue uma almofada. Cuidado!, digo.
     Você tá muito fundo. Ela então finge que se afoga, e eu corro pra salvá-la. E é uma desculpa pra abraçá-la muito forte.
     Desde então a estante já foi um castelo, o armário um esconderijo. 
     Chegamos num momento da quarentena em que todos os objetos da casa já foram ressignificados. Já não há mais o que inventar. 
     O esfregão é uma peruca, a vassoura é um cavalo, o controle remoto é um celular, a televisão, uma grande aliada. Na hora da faxina, toma-lhe “Frozen”. Livre estou, cantamos, livre estou — como se estivéssemos.
     Já não sei como vai ser seu reencontro com a praia de verdade. 
     Talvez a areia incomode, o mar amedronte. Dois meses e meio, fiz as contas, equivalem a três anos pra mim: um décimo da vida. É uma eternidade. Já não sei se o mundo lá fora estará à altura do tapete.
     Muitas vezes invejamos os amigos sem filhos. Os livros que estaríamos lendo, os filmes, as séries, os instrumentos que aprenderíamos a tocar. Mas o tapete seria apenas um tapete. E a vassoura apenas a vassoura.
     Não sei o que seria de nós sem a companhia de alguém que nos faz ver, em cada canto da casa, todas as possibilidades do mundo.

Publicado originalmente na Folha de São Paulo.

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