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Porque É Tão Importante Ver As Estrelas, José Eduardo Agualusa

Esta é a história do meu amigo fortunato, que numa madrugada de pouca sorte acordou nu no corredor de um grande hotel londrino. Fortunato, alto funcionário de administração do Estado, em Luanda, tinha ido a Londres participar num encontro internacional de burocratas. Técnico competente, homem de cultura e bom gosto, incorruptível por natureza e educação, o meu amigo sofre amargamente com a situação do país e a imagem de Angola no exterior.  Ele acredita, um pouco ingenuamente, que cabe a todos os técnicos honestos a missão de melhorar essa imagem.
     Nos países da Europa ocidental é fácil a qualquer funcionário manter intacta a integridade moral. O difícil, na verdade, é ser corrupto. Exige, no mínimo, alguma coragem e imaginação. Num país essencialmente corrupto acontece o inverso: um funcionário incorruptível é olhado com suspeita e revolta por toda a gente; com suspeita porque ninguém acredita na sua incorruptibilidade ("alguma coisa aquele tipo deve estar a esconder") ; com revolta porque perturba a lucrativa atividade dos outros. Deste modo, ao burocrata incorruptível de um país corrupto não basta a firmeza das convicções morais - ele tem de ter o dobro da coragem de um funcionário venal europeu. E, ao contrário deste, não ganha nada com isso.
     Faço essas observações para melhor esclarecer a personalidade do meu amigo. Fortunato partiu para Londres decidido a mostrar ao mundo a competência, o rigor  e a honestidade dos quadros angolanos.  Logo na primeira noite, recusou o convite de um grupo de colegas portugueses, que insistiam em o levar a um espetáculo de travestis, ("com gajos tão femininos que ao pé deles as mulheres parecem imitações") e ficou no quarto a estudar os dossiers. Deitou-se cedo, inteiramente nu, e adormeceu. A meio da noite levantou-se para urinar. Desde criança que Fortunato se levanta de noite, e vai confusamente, sem interromper o sono, fazer o seu xixi. Naquela noite ele fez xixi sem problemas, mas ao regressar confundiu a porta do quarto com a da casa de banho, saiu para o corredor, sempre sonambulando, tropeçou num largo sofá, meio afundado na penumbra, e estendeu-se nele. Acordou de madrugada, trêmulo de frio, sem saber onde estava. Quando finalmente compreendeu o que lhe tinha acontecido levantou-se num salto, lançou-se em direção à porta do quarto... E encontrou-a fechada!
     - Pensei em sucidar-me, mas não tinha como. Ali estava eu, às seis da manhã, um preto nu no corredor de um dos melhores hotéis de Londres.
     Afastada a hipótese de suicídio, Fortunato lembrou-se da avó. Todos os homens que choraram durante a infância, no regaço de uma avó, lembram-se dela nas situações de maior desespero. A avó de Fortunato nasceu em Calomboloca e viu pela primeira vez a luz elétrica, já adulta, quando o marido a levou para Luanda. Ao contrário do que seria de esperar, não ficou encantada. Na opinião da velha senhora o esplendor elétrico das grandes cidades, ao ocultar o brilho das estrelas, prejudicou a humanidade. Ela achava que , tendo deixado de ver as estrelas - tendo deixado de se confrontar, todas as noites, com o ilimitado, o infinito, a fantástica imensidão do universo - os homens perderam a humildade, e com a humildade perderam a razão. O desvario do mundo está, na opinião dela, diretamente ligado ao êxodo rural e à multiplicação vertiginosa nas grandes cidades.
     Fortunato, nu, encostado à porta do quarto, teve algum tempo para meditar na filosofia da avó. Achou que aquilo fazia sentido:
       - Compreendi de repente a tremenda desimportância da minha nudez. 
     Entrou no elevador, desceu até a recepção, e pediu que lhe abrissem a porta do quarto, pois tinha-a fechado inadivertidamente. O recepcionista, um irlandês muito ruivo, muito irlandês, olhou para ele e o que viu foi um homem íntegro. Estava nu? O recepcionista não o saberia dizer. Era uma dignidade aquele homem. Procurou a chave e foi abrir-lhe a porta.

José Eduardo Agualusa, Catálogo de Luzes,Ed. Gryphus, 2013, págs.57-58
Imagem: Pixabay.
  

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