
Nos países da Europa ocidental é fácil a qualquer funcionário manter intacta a integridade moral. O difícil, na verdade, é ser corrupto. Exige, no mínimo, alguma coragem e imaginação. Num país essencialmente corrupto acontece o inverso: um funcionário incorruptível é olhado com suspeita e revolta por toda a gente; com suspeita porque ninguém acredita na sua incorruptibilidade ("alguma coisa aquele tipo deve estar a esconder") ; com revolta porque perturba a lucrativa atividade dos outros. Deste modo, ao burocrata incorruptível de um país corrupto não basta a firmeza das convicções morais - ele tem de ter o dobro da coragem de um funcionário venal europeu. E, ao contrário deste, não ganha nada com isso.
Faço essas observações para melhor esclarecer a personalidade do meu amigo. Fortunato partiu para Londres decidido a mostrar ao mundo a competência, o rigor e a honestidade dos quadros angolanos. Logo na primeira noite, recusou o convite de um grupo de colegas portugueses, que insistiam em o levar a um espetáculo de travestis, ("com gajos tão femininos que ao pé deles as mulheres parecem imitações") e ficou no quarto a estudar os dossiers. Deitou-se cedo, inteiramente nu, e adormeceu. A meio da noite levantou-se para urinar. Desde criança que Fortunato se levanta de noite, e vai confusamente, sem interromper o sono, fazer o seu xixi. Naquela noite ele fez xixi sem problemas, mas ao regressar confundiu a porta do quarto com a da casa de banho, saiu para o corredor, sempre sonambulando, tropeçou num largo sofá, meio afundado na penumbra, e estendeu-se nele. Acordou de madrugada, trêmulo de frio, sem saber onde estava. Quando finalmente compreendeu o que lhe tinha acontecido levantou-se num salto, lançou-se em direção à porta do quarto... E encontrou-a fechada!
- Pensei em sucidar-me, mas não tinha como. Ali estava eu, às seis da manhã, um preto nu no corredor de um dos melhores hotéis de Londres.
Afastada a hipótese de suicídio, Fortunato lembrou-se da avó. Todos os homens que choraram durante a infância, no regaço de uma avó, lembram-se dela nas situações de maior desespero. A avó de Fortunato nasceu em Calomboloca e viu pela primeira vez a luz elétrica, já adulta, quando o marido a levou para Luanda. Ao contrário do que seria de esperar, não ficou encantada. Na opinião da velha senhora o esplendor elétrico das grandes cidades, ao ocultar o brilho das estrelas, prejudicou a humanidade. Ela achava que , tendo deixado de ver as estrelas - tendo deixado de se confrontar, todas as noites, com o ilimitado, o infinito, a fantástica imensidão do universo - os homens perderam a humildade, e com a humildade perderam a razão. O desvario do mundo está, na opinião dela, diretamente ligado ao êxodo rural e à multiplicação vertiginosa nas grandes cidades.
Fortunato, nu, encostado à porta do quarto, teve algum tempo para meditar na filosofia da avó. Achou que aquilo fazia sentido:
- Compreendi de repente a tremenda desimportância da minha nudez.
Entrou no elevador, desceu até a recepção, e pediu que lhe abrissem a porta do quarto, pois tinha-a fechado inadivertidamente. O recepcionista, um irlandês muito ruivo, muito irlandês, olhou para ele e o que viu foi um homem íntegro. Estava nu? O recepcionista não o saberia dizer. Era uma dignidade aquele homem. Procurou a chave e foi abrir-lhe a porta.
Imagem: Pixabay.
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