O Rapazinho disse à garota:
- Você precisa ter mais cultura, ouviu? Cultura. fica aí com essas milongas de Caetano, Gil e não sei que mais, e ignora os verdadeiros mestres da poesia. Já ouviu falar em Camões?
- Já. Um chato
- Rilke?
- Como é o nome dêle?
- Emily Dickinson?
- Sei lá.
- Fernando Pessoa?
- Esse é irmão da Tânia, ora.
-Viu como você é burrinha? Irmão da Tânia coisa nenhuma. Quem é a Tânia para merecer um irmão desse gabarito? Fernando Pessoa, meu anjo, é simplesmente o maior...
-Então são dois. Porque Nandinho eu conheço bem, não é de poesia.
- Podem ser mil com esse nome, nenhum chega aos pés do Fernando Pessoa de que eu estou falando.Qual, você tem jeito não.
- Então, por que você diz que gosta de mim? Procure outra que saiba de cor nomes de todos esses caras.
- Não tem nada uma coisa com a outra. Gosto de você por certos motivos. Gosto de você... até nem sei por que. Mas fico por conta vendo você tão ignorantezinha em poesia, que pra mim é o máximo.
- Pois me dá umas aulas de poesia.
- Depois do carnaval eu dou Agora você está com a cabeça mal atarraxada. Vamos fazer o seguinte. Te empresto o meu Fernando Pessoa para você dar uma lida salteado e depois conversamos. Muito cuidado com o volume, viu, sua maluca? É de estimação.Se você perder, nem sei o que acontece.
A garota me procurou:
- Posso lhe pedir um favor?
- Dois.
- Estou com um problema sério.
- Esqueceu a pílula?
- Isso é pergunta que se faça? E se eu usasse e esquecesse, era ao senhor que eu recorreria?
- Desculpe, conte seu problema.
- Meu namorado me emprestou um livro, e o Gibi comeu.
- Quem é Gibi?
- Meu fox-terrier de dois meses. Um cãozinho divino!
- O Gibi comeu o livro. E daí?
- Daí o livro era de estimação, um tal de Fernando Pessoa. Meu namorado me mata.
- Mas o Gibi papou o livro inteiro?
-Só um pedaço da capa e as primeiras folhas. Quando eu vi e zanguei com ele (zanguei de leve, não bati) , já tinha papado.
- E então?
- Meu namorado tem muita história com o senhor. Diz que o senhor também é bacana, embora não tanto quanto Fernando Pessoa.
- Obrigado.
- Comprei outro livro para dar a ele. Caro, hem? esse Fernando Pessoa. Gastei quase toda a mesada.
- Por que não devolve o livro meio comido pelo Gibi? Namorado acha graça em tudo.
-Vou devolver, mas ele não ia achar graça. O Gibi comeu a dedicatória.
-De Fernando Pessoa para seu namorado? Sem essa.
-Era do professor do meu namorado. Foi um prêmio que ele ganhou na faculdade.
-Ahh
- O professor mudou para Brasília, como é que eu vou me arranjar? Então eu queria que o senhor autografasse o livro novo, para eu entregar junto com o velho, e ele ver que fiz o possível para remediar a começão do Gibi.
-Minha filha, por que eu vou entrar nessa dança? Não sou o professor, não sou o Pessoa, não sou o Gibi.
- Mas o senhor não está compreendendo que o livro tem de ter um autógrafo? A quem eu vou pedir? Ao Jorge Ben, ao Chacrinha? Aí é que ele me enforcava mesmo. Me faz esse favorzinho, faz. Bote aí uma coisa lindinha, diz que o Gibi não teve culpa, que ele gostou demais de Fernando Pessoa , pensou que era doce e regalou-se!
Botei. E no exemplar comido, meu autógrafo seguiu com o de Gibi.
Andrade, Carlos Drummond de, O Poder ultra jovem e mais 79 textos em prosa e verso. 3ª ed.Rio de Janeiro, José Olympio, 1974, págs. 13 a 15.
Nota: o blog manteve a grafia original
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