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Formas do Nu, João Cabral de Melo Neto

1.Aranha passa a vida
tecendo cortinados
com o fio que fia
de seu cuspe privado

Jamais para velar-se:
e por isso são ralos.
Para enredar os outros
é que usa os enredados.

Ela sabe evitar
que a enrede seu trabalho,
mesmo se dela mesma,
o trama, autobiográfico.

E em muito menos tempo
que tomou em tramá-lo
o véu que não a velou
aí deixa abandonado.

2. Somente na metade
é o aruá couraçado.
Na metade cimento,
na laje do telhado.

Porque apesar do teto
que o veste pelo alto,
o aruá existe nu
nu de pele esfolado.

Sua casa tem teto
mas não tem assoalho:
cai descalça no mangue,
chão também escoriado.

E o morador da casa
se mistura por baixo
com a lama já mucosa:
bicho e chão penetrados.

3.Que animais prezam o nu
quanto o burro e o cavalo
(que aliás em Pernambuco
jamais andam calçados)

A sela e a cangalha
deixam-nos sufocados
como se respirassem
também pelos costados.

É vê-los se espojar
na escova má do pasto
quando lhes tiram o arreio
e os soltam no cercado:

se espojando, têm todos 
os gestos de asfixiado:
espasmos, estertores
de asmático e afogado.

4. O homem é o animal
mais vestido e calçado.
Primeiro, a pano e feltro
se isola do ar abraço

Depois, pedra e cal
de paredes trajado
se defende do abismo
horizontal do espaço

Para evitar a terra,
calça nos pés sapatos
nos sapatos, tapete
e nos tapetes, soalhos.

Calça as ruas: e como
não pode todo o mato,
para andar nele estende
passadeiras de asfalto.

In: NETO, João Cabral de, Antologia Poética,8ª ed,Rio de Janeiro, Ed.José Olympio, 1965, págs.65-67.




 Imagem:www.fotos.com.br

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