O primeiro dia.
Barulho festivo de repente,já sem costume. E a luz que sobra, toda, acesa.
Os rádios ligados na notícia única. " o mundo inteiro... as assinaturas... sua Santidade... depois de tanto..."
Depois de tanto, tanto sofrimento.
Acabou
Gente na rua, e o sorriso permitido. Mãe, podemos ir à praça? Os americanos chegaram.
Os americanos chegaram um dia ao meu país, e a guerra acabou.
Os americanos saem hoje de outro país e a guerra acaba.
E no primeiro dia, aquela sensação de estar sem roupa, de estar desprotegido na ausência do perigo.
Queremos sair todos, ir à rua, correr pelos campos. Mas sem prédios para contê-las as ruas se perdem debaixo das ruínas, e os campos já não existem.
Quero tocar o sino que virou canhão, abrir o portão que foi fundido, debruçar-me na sacada que a bomba esfarelou. Quero esquecer o alemão que nunca aprendi, e não saber mais, nunca mais, quem foi Lili Marlene. Preciso agora aprender a humilhar-me em inglês.
Entro nos labirintos dos abrigos, mas amarro na porta o fio de lã com que minha mãe teceu tantas roupas para o front. Me espera adiante a pomba com cabeça de touro e raminho na boca. e eu lhe pergunto, pomba, que fizeste do teu irmão?
O primeiro dia.
Quem tem casa, faz faxina. É preciso tirar o azul escuro que pintou os vidros, acabar com as cortinas pretas. É preciso tirar da despensa o cheiro de vazio e prepará-la para as comidas que virão. Limpa-se a madia, e a tampa fica aberta. O que é madia? É o móvel antigo onde se guarda a farinha de trigo, onde a dona da casa faz o pão. É o altar da família.
Varre, espana, joga água. Tocam buzinas lá fora, e gente canta. Corre menino, o mundo não tem céu. Acabaram as asas, desapareceram as hélices, as bombas não vêm mais. Pode olhar para cima.
Olha para cima e não vejo o telhado. Olho para cima e não vejo os andares que dividiam o edifício. Olho para cima e vejo um longo túnel de paredes manchadas, de paredes rasgadas, de quadros ainda nas paredes.
Um buraco no muro é uma marca de bala. Um buraco no chão é cratera de obus. Uma marca na carne é ferida que sangra.
O primeiro dia.
E depois, todos os outros.
Os americanos chegaram. o pão dos americanos é branco como o pão de antigamente. O dinheiro dos americanos é ouro como o dinheiro de antigamente. E o pão e o ouro correm num mercado, negro como é conveniente.
Vou à rua sem roupa e sem rua. Vou sorrindo sem os dentes, desfazendo as ataduras, escorregando no sangue. Vou no vento que apagou os incêndios, na chuva que não cegou o napalm. E vou chorando. E canto. Porque a guerra acabou.
E esta é a paz.
Imagem de: myscoops.com |
Barulho festivo de repente,já sem costume. E a luz que sobra, toda, acesa.
Os rádios ligados na notícia única. " o mundo inteiro... as assinaturas... sua Santidade... depois de tanto..."
Depois de tanto, tanto sofrimento.
Acabou
Gente na rua, e o sorriso permitido. Mãe, podemos ir à praça? Os americanos chegaram.
Os americanos chegaram um dia ao meu país, e a guerra acabou.
Os americanos saem hoje de outro país e a guerra acaba.
E no primeiro dia, aquela sensação de estar sem roupa, de estar desprotegido na ausência do perigo.
Queremos sair todos, ir à rua, correr pelos campos. Mas sem prédios para contê-las as ruas se perdem debaixo das ruínas, e os campos já não existem.
Quero tocar o sino que virou canhão, abrir o portão que foi fundido, debruçar-me na sacada que a bomba esfarelou. Quero esquecer o alemão que nunca aprendi, e não saber mais, nunca mais, quem foi Lili Marlene. Preciso agora aprender a humilhar-me em inglês.
Entro nos labirintos dos abrigos, mas amarro na porta o fio de lã com que minha mãe teceu tantas roupas para o front. Me espera adiante a pomba com cabeça de touro e raminho na boca. e eu lhe pergunto, pomba, que fizeste do teu irmão?
O primeiro dia.
Quem tem casa, faz faxina. É preciso tirar o azul escuro que pintou os vidros, acabar com as cortinas pretas. É preciso tirar da despensa o cheiro de vazio e prepará-la para as comidas que virão. Limpa-se a madia, e a tampa fica aberta. O que é madia? É o móvel antigo onde se guarda a farinha de trigo, onde a dona da casa faz o pão. É o altar da família.
Varre, espana, joga água. Tocam buzinas lá fora, e gente canta. Corre menino, o mundo não tem céu. Acabaram as asas, desapareceram as hélices, as bombas não vêm mais. Pode olhar para cima.
Olha para cima e não vejo o telhado. Olho para cima e não vejo os andares que dividiam o edifício. Olho para cima e vejo um longo túnel de paredes manchadas, de paredes rasgadas, de quadros ainda nas paredes.
Um buraco no muro é uma marca de bala. Um buraco no chão é cratera de obus. Uma marca na carne é ferida que sangra.
O primeiro dia.
E depois, todos os outros.
Os americanos chegaram. o pão dos americanos é branco como o pão de antigamente. O dinheiro dos americanos é ouro como o dinheiro de antigamente. E o pão e o ouro correm num mercado, negro como é conveniente.
Vou à rua sem roupa e sem rua. Vou sorrindo sem os dentes, desfazendo as ataduras, escorregando no sangue. Vou no vento que apagou os incêndios, na chuva que não cegou o napalm. E vou chorando. E canto. Porque a guerra acabou.
E esta é a paz.
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