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Perplexidade, Maria Judite de Carvalho

     A criança estava perplexa. Tinha os olhos maiores e mais brilhantes do que nos outros dias, e um risquinho novo, vertical, entre as sobrancelhas breves. «Não percebo», disse.
     Em frente da televisão, os pais. Olhar para o pequeno écran era a maneira de olharem um para o outro. Mas nessa noite, nem isso. Ela fazia tricô, ele tinha o jornal aberto. Mas tricô e jornal eram alibis. Nessa noite recusavam mesmo o écran onde os seus olhares se confundiam. A menina, porém, ainda não tinha idade para fingimentos tão adultos e subtis, e, sentada no chão, olhava de frente, com toda a sua alma. E então o olhar grande a rugazinha e aquilo de não perceber. «Não percebo», repetiu.
     «O que é que não percebes?» disse a mãe por dizer, no fim da carreira, aproveitando a deixa para rasgar o silêncio ruidoso em que alguém espancava alguém com requintes de malvadez.
     «Isto, por exemplo.»
     «Isto o quê»
     «Sei lá. A vida», disse a criança com seriedade.
     O pai dobrou o jornal, quis saber qual era o problema que preocupava tanto a filha de oito anos, tão subitamente.
     Como de costume preparava-se para lhe explicar todos os problemas, os de aritmética e os outros.
     «Tudo o que nos dizem para não fazermos é mentira.»
     «Não percebo.»
    «Ora, tanta coisa. Tudo. Tenho pensado muito e...Dizem-nos para não matar, para não bater. Até não beber álcool, porque faz mal. E depois a televisão...Nos filmes, nos anúncios...Como é a vida, afinal?»
     A mão largou o tricô e engoliu em seco. O pai respirou fundo como quem se prepara para uma corrida difícil.
     «Ora vejamos,» disse ele olhando para o tecto em busca de inspiração. «A vida...»
     Mas não era tão fácil como isso falar do desrespeito, do desamor, do absurdo que ele aceitara como normal e que a filha, aos oito anos, recusava.
     «A vida...», repetiu.
     As agulhas do tricô tinham recomeçado a esvoaçar como pássaros de asas cortadas.

                              

Obras de Maria Judite de Carvalho (Lisboa 18.09.1921- Lisboa 1998):Tanta Gente, Mariana (contos), Lisboa: Europa América, 1988.
 As Palavras Poupadas (contos), Lisboa: Europa América,1988.
 Paisagem sem Barcos (contos), Lisboa: Europa América, 1990.
 Os Armários Vazios (romance), Lisboa: Livraria Bertrand, 1978.
 O Seu Amor por Etel (novela), Lisboa: Movimento, 1967.
 Flores ao Telefone (contos), Lisboa: Portugália Editora, 1968.
 Os Idólatras (contos), Lisboa: Prelo Editora, 1969.
 Tempo de Mercês (contos), Lisboa: Seara Nova, 1973.
 A Janela Fingida (crónicas), Lisboa: Seara Nova, 1975.
 O Homem no Arame (crónicas), Amadora: Editorial Bertrand, 1979.
 Além do Quadro (contos), Lisboa: O Jornal, 1983.
 Este Tempo (crónicas) Lisboa: Editorial Caminho, 1991.
 Seta Despedida (contos), Lisboa: Europa América, 1995.
 A Flor Que Havia na Água Parada (poemas), Lisboa: Europa América,1998 (póstumo).
 Havemos de Rir! (teatro), Lisboa: Europa América,1998 (póstumo).

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