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Poema Didático,Paulo Mendes Campos


Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo

Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos,
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto de meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me.
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhando a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar?


Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão: agora sei que sou real em um mundo real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse,
E não olhei a ferrovia – mas o homem que sangrou na ferrovia -
E não olhei a fábrica – mas o homem que se consumiu na fábrica -
E não olhei mais a estrela – mas o rosto que refletiu o seu fulgor.


Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto?
0 mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magníficas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
Nele, como causa primeira, existe o corpo do homem
– cabeça, tronco, membros, aspirações a bem-estar–
E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga adivinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
0 mundo nasceu das necessidades. 0 caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconseqüente,
Que apenas palpitasse ao sopro da imaginação. 0 homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo
Se podemos admiti-lo – não se redimo em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força – aos que o herdaram -
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda me perturbava a flor e não o fruto,
Quando ainda sofria sobre as armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade,
Sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.




Sugestão de um grande amigo a quem agradeço com um beijo.

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