Na casa de meus avôs existe um sótão encantado. Não sei bem onde é a escada para alcançá-lo; às vezes eu a encontro, outras não, mas ela existe, e é o único jeito que sei chegar até o sótão encantado.
Neste sótão, mora o rato Benevides. Tenho um medo absurdo dele, embora nunca tenha me feito mal, a bem dizer, nunca me dirigiu a palavra.
Mas nas minhas noites insones, Benevides passa por baixo da minha cama, com passinhos curtos, arrepiando aquele pêlo horrível. Encho-me de medo e fico ouvindo ele se afastar, voltar para o sótão encantado.
Acho que ele mora no caixão de defunto. É, existe um caixão de defunto, sem defunto, lá no sótão. Está encostado na parede úmida, perto da janela que dá para os fundos da casa, tapado parcialmente com uma lona escura.
Nunca entendi e nunca me contaram o porquê deste caixão. Acho que foi comprado para um tal de tio Jambão, que sempre foi doente, mas quando morreu estava gordo e não coube no caixão. Bem feito, quem manda comprar caixão para gente viva.
O que mais gosto lá em cima são os dois baús de madeira. Eles escondem tesouros: Um cheio de revistas e o outro, de livros.
Revistas coloridas e fotonovelas, que um dia irei devorá-las, pois tem fotos de namorados se beijando, têm mulheres lindas e homens corajosos. Tem revistas que me dão medo, mas ao mesmo tempo não consigo deixar de vê-las, acho que são tragédias, pois tem sangue, feridos e mortos. E tem gente chorando. A que mais me impressiona é a do estudante morto. Tenho pena dele, quero entrar na revista para ajudar os seus colegas, gritar.
No outro baú, os tesouros são mais discretos, são muitos livros, de histórias de ler e de estudar. Um dia vou ler todos eles, serei escritora ou balconista de loja, ainda não decidi. Acho que é cedo.
Tem também uma caixa de madeira pintada com flores, com uma tampa muito pesada. La estão muitas peças de roupas antigas, vestidos, ternos, chapéus, sapatos. De homens, de mulheres e de anjos. É assim que minha avó chama as crianças que morreram. Porque pela idade das roupas, as crianças já devem ter morrido... Ou estão bem velhinhas.
Esta caixa, além das roupas, guarda um cheiro de passado. Não sei se gosto ou não gosto do cheiro de passado. Às vezes ele me enjoa, mas não consigo subir ao sótão sem abrir a caixa e sentir o cheiro de passado.
Ia esquecendo, no sótão, mora Lefer. Uma fada verde que é minha amiga. Parcialmente amiga, pois às vezes fica escondida nas sombras e não vem conversar comigo. Um ultraje, como diz minha avó. Onde já se viu se esconder das visitas?
Lefer se alimenta de pó, e pó é o que não falta lá em cima. Anda engordando, vejo suas asinhas cansadas de carregar o corpo roliço. Eu já a alertei, mas como eu disse, Lefer é uma fada incomum. Temperamental!
Lefer tem por amigo um sapo que nunca subiu ao sótão. Vive no jardim. Já com Benevides, Lefer cortou relações desde que o rato abusado a acordou durante a noite convidando-a para dançar. Lefer considerou uma ofensa. Com razão, mesmo não estando em sua melhor forma, não se presta para dançar com ratos. Ora, pois.
Hoje acordei disposta, não vou tomar café, vou subir direto para o sótão e encontrar Lefer antes que saia a borboletear.
Só que ao passar pela janela do corredor que dá para a cozinha, vejo no jardim, o velho caixão de defuntos, e mais os baús, a velha caixa, muitos livros, revistas. Tudo estacionado embaixo da laranjeira, amontoado, sem cuidado, como se fosse lixo.
Deu-me um desânimo. O que estariam fazendo minhas coisas, ali, amontoadas no jardim?
Ao chegar à cozinha, ouço os adultos que tomavam café e conversavam, sem perceber a minha presença.
- Ficou muito bom! Agora esta menina terá um lugar decente para brincar.
- Já que ela é tão estranha, que pelo menos seja estranha em um lugar limpo.
- Ela não é estranha, é tímida.
- Não é estranha? Viver pelos cantos, sem amigas, folhando livros e revistas velhas, falando sozinha! Quero ver quando crescer, arrumar namorado.
No caso, a estranha sou eu!
Subi as escadas lentamente, esperando o pior. Meu sótão havia sumido, evaporado. Em seu lugar uma sala clara e arejada.
Como um dia iria imaginar que sentiria falta do velho caixão? Acostumara com ele e com o medo que ele provocava. Que graça teria o anoitecer, que entrava pela janela enchendo de sombras o meu mundo?
Aí meu Deus! Lefer já havia voado para outra morada. Conhecendo-a como a conheço, deve ter considerado aquela mudança uma ofensa. Uma grande ofensa!
Benevides jamais se acostumaria com aquela claridade, com aquele piso lustro e escorregadio.
Só sobraram livros sérios e sisudos, arrumados como soldados de chumbo na prateleira forrada de papel azul. Só livros sérios e sem gravuras, que vai demorar muito, muito para eu ler.
O cheiro de passado se evaporou junto com a velha caixa de tampa pesada.
Desci as escadas bem devagar, precisava entender que meu mundinho não existia mais, meu portal estava definitivamente fechado. E que um dia eu terei de enfrentar a realidade sem graça dos adultos. Mas um dia.
Hoje, acabo de encontrar, quieta e pesada, uma enorme cristaleira, no canto da sala grande, cheia de bibelôs de porcelana, de adagas de ferro e garruchas enferrujadas. Ai meu Deus! Será que vão me deixar explorar estes novos tesouros?
( Publicação autorizada pela autora)
Maravilhoso. É um dos meus preferidos.
ResponderExcluirParabéns, Marilúcia!
Vc é Marilucia que trabalhava na vulcania?
ResponderExcluirse for me responda por favor.
Leonice