Dava gosto morar na rua Santa Gata. No tempo em que a palavra “bucólico” ainda estava em uso, aplicava-se perfeitamente àquele trecho da cidade: três quarteirões arborizados, casas cheirando a jasmim e sossego. O gato Ismael, “propriedade” coletiva dos moradores, orgulhava-se por ter uma irmã em pelo e gaticidade elevada ao panteão das almas sem mácula. Gata milagreira, a quem os humanos atolados “neste vale de lágrimas” encaminhavam súplicas.
Contritos, os residentes pronunciavam a jaculatória: “Santa Gata, rogai por nós”. Ismael fazia o mesmo, em miaus fervorosos, antes das escapadas por becos, muros e telhados, no período da noite avançada que os ingleses chamam “ungodly hours” – horas sem reverência a Deus. Sua devoção o protegia de atropelamentos, quedas, chutes, balas perdidas, comida envenenada. Salve, Santa Gata, irmã de misericórdia e esperança nossa. Salve!
Um espírito de porco – pois espírito de gato jamais diria uma coisa assim – jurava que nunca existiu uma gata canonizada. “Se a Igreja Católica nem reconhece alguns santos-gente consagrados pelo povo, que dirá um felino!” Segundo esta versão malévola, a rua se chamava originalmente Santa Ágata - com acento no primeiro a. A letra inicial fora corroída pela ferrugem na placa de metal, modelo antigo, restando a grafia “Santa gata”.
Essa explicação jamais me convenceu. Pois corre a lenda que uma gatinha cor de todos os gatos tornou-se reverenciada por amamentar os bebês das catadoras de lixo naquelas redondezas, enquanto elas os deixavam aos cuidados da felina mãe e iam trabalhar. Seu leite farto e seu amor de gata forneceram a energia extra que impulsionou várias crianças daquela humilde origem a irem mais longe na vida. Isto sim: o nome da minha rua era justa e digna homenagem àquela gata babysitter que, além do farto produto de suas tetas, prodigalizava o leite da ternura felina.
Foi então que aconteceu a injustiça, a indignidade. Um feio dia, percebemos que a rua Santa Gata mudara de nome. Novas placas patrocinadas por fabricantes de mouse de computador e ração para gato apareceram fincadas nas esquinas, dando prioridade ao marketing, em vez do serviço público: os nomes das empresas e marcas apareciam em letras graúdas e coloridas. Abaixo, em letras miúdas, pouco legíveis à distância, estava escrito: “Rua Deputado Fulustreco Jeton”.
Santa Gata foi destronada por uma “Excelência” qualquer! As placas azuis com letras brancas, ostentando o nome antigo, digno e verdadeiro, foram para o vendedor de ferro-velho, na pilha “saudades não recicláveis”. Resta o consolo da praga milenar: quem desrespeita gato tem sete anos de atraso. Se for usurpador de nome de rua que o povo consagrou, recebe setenta vezes sete anos de maldição. E, se apagar o registro de uma história de bondade... aí, não entrará mesmo no Reino dos Céus.
Diário de Pernambuco
A-11 Edição 29/09/08
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