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Astronomia, Nuno Júdice

Vou buscar uma das estrelas que caiu do céu, esta noite. Ficou presa a um ramo de árvore, mas só ela brilha, único fruto luminoso do verão passado. Ponho-a num frasco, para não se oxidar; e vejo-a apagar-se, contra o vidro, à medida que o dia se aproxima, e o mundo desperta da noite. Não se pode guardar uma estrela. O seu lugar é no meio de constelações e nuvens, onde o sonho a protege. Por isso, tirei a estrela do frasco e meti-a no poema, onde voltou a brilhar, no meio de palavras, de versos, de imagens . Nuno Júdice (1949-2024), in "O Breve Sentimento do Eterno" Ilustração de Maoi
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Soneto de Maio, Vinicius de Moraes

Suavemente Maio se insinua Por entre os véus de Abril, o mês cruel E lava o ar de anil, alegra a rua Alumbra os astros e aproxima o céu. Até a lua, a casta e branca lua Esquecido o pudor, baixa o dossel E em seu leito de plumas fica nua A destilar seu luminoso mel. Raia a aurora tão tímida e tão frágil Que através do seu corpo transparente Dir-se-ia poder-se ver o rosto Carregado de inveja e de presságio Dos irmãos Junho e Julho, friamente Preparando as catástrofes de Agosto... Ouro Preto, maio de 1967 Imagem: Pixabay

Elegia Com Variação Romântica, Nuno Júdice

As mulheres loucas arrumam os quartos, fazem as camas desfeitas, empilham camisas e calças, abotoam os cintos do infinito, prendem os laços da sombra. Com os seus olhos cegos, enfiam agulhas no buraco da vida, cosem as feridas do amor que não tiveram, cantam devagar a canção da idade fria. Dispo essas mulheres no meu poema; espalho as suas roupas pelas cadeiras do quarto; abro a cama onde as deito; rasgo os pontos que acabaram de coser. O seu sexo - seco pelos ventos de uma inquietação nocturna - humedece-me os dedos. Desfolho os dias de março enquanto desfloro os seus lábios. Por vezes, as mulheres loucas abrem a porta da varanda, respiram o perfume das trepadeiras brancas da primavera, desmaiam com o sol. Sobre o autor: Nuno Júdice (29/4/1949-13.3/2024) é um ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Universidade Nova. Obras do autor: 50 anos de Poesia - antologia A P

Cravos de Abril, Adalberto Monteiro

Os cravos portugueses Sagraram-se Pelo sangue derramado De negros e alvos. Os cravos, o povo português Os porta à mão como quem empunha um fuzil. E ao cravá-los na lapela, Pulsa-lhes um segundo coração. Os cravos portugueses São perfumados e encarnados De hastes altas, altivos mastros. Na primavera suas pétalas São jorros rubros de vinho. Os cravos dessa terra. O povo os semeia, os cultiva, Os celebra. No 25 de abril, Os portugueses adquirem cravos Como quem compra pão. Carregam cravos e desbravam trevas, As mãos seguram cravos como quem conduz Tochas de fogo e luz. Portugal que criou a ciência dos mares, Vê Lisboa alagada pela esperança, Vê, novamente, nos punhos cerrados do povo A bravura de quem venceu a fúria dos oceanos, E a selvageria dos tiranos. Os opressores argumentam, – Os tempos são outros. E para ter, eternamente, Os trabalhadores como escravos, Alardeiam: os cravos de Abril Murcharam, para sempre, irremediavelmente… Esquecem que eles, São viçosos, teimosos e persistentes

Cantigas de Encurtar Caminho, Olegário Mariano

Bate o luar pelas encostas, Banha vales e grotões. Que noite clara e comprida! Entro no atalho da vida Com um grande saco nas costas, Cheio de recordações. A luz do luar, de mansinho. As sombras da noite espanta: Quem canta encurta caminho, Mata saudades quem canta. Pesa-me êste desalento Que a alma me aperta e espezinha "Caminha!" - murmura o vento, Dizem as nuvens: "Caminha!..." Vem do silêncio das matas Rumor de fonte e cachoeira. Cantam minhas alparcatas Cantando a canção da poeira. Tudo canta! A flor do mato, Uma ave noturna, um grilo Canta o veio do regato, Canta o luar no céu tranquilo. Canta o bacurau na serra, Canta o sapo na lagoa. Sobe do hálito da terra O canto da vida boa. Tanto amor! Tanta promessa Nesta vida em que definho!... E eu vou cantando baixinho... Quem canta chega depressa, Quem canta encurta caminho. Em Toda Uma Vida de Poesia vol.2 Ed.José Olympio 1957, págs.535-536 Nota: o blog manteve a ortografia original Imagem: Pixabay

Prece, Fernando Pessoa

Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está - (o teu templo) - eis o teu corpo. Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faz com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar. Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e rezar-te

O Pasquim Que Ninguém Viu, Guttemberg Guarabyra

O licor polonês que encontrei no armário de bebidas do cartunista Ziraldo era de cerejas. Não sei de que espécie, pois há vários tipos de cerejeiras. Um deles, o Primus avium, fornece uma bela madeira usada na fabricação de instrumentos musicais, além de frutas muito doces. Independentemente de saber que tipo de cerejeira existiria na Polônia, estava mesmo curioso era para conhecer o gosto da bebida. Pedi um trago. O licor era saborosíssimo. Como havia dezenas de garrafas, perguntei se não me ofertaria uma de presente. Ziraldo negou-me a dádiva explicando que comprara aquilo tudo para ser apreciado em casa com os amigos. Que eu poderia consumir o quanto desejasse, desde que fosse com ele e na casa dele. Mariozinho Rocha, ao meu lado, disse que topava a parada. Ziraldo foi buscar os copos. Os que ali estavam haviam participado comigo, momentos antes, de uma reunião, e vieram se juntar a nós para apreciar o licor. Entre eles, Sérgio Cabral pai, Millôr Fernandes, Jaguar e demais