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O Retrato da Santa Ficou Na Parede da Sala, crônica de Marcos Cirano


     Certo dia ele acordou e notou que ela não estava mais em casa. Também não deixou um bilhete, nem de uma só palavra: simplesmente sumiu. E fez questão de levar tudo o que era dela, coisas poucas é verdade: roupas, alguns pares de sapatos, um estojo de maquiagem, a coleção de cartas que ele lhe enviara enquanto ainda eram namorados muitos anos atrás e uma pulseira de ouro que ela ganhou no dia em que os dois casaram. O quadro com a imagem de Nossa Senhora de Fátima que ficava na parede da sala, esse ela deixou no mesmo lugar: até porque, embora comprado por ela, aquele objeto sagrado a ninguém pertencia e era preciso que ele continuasse ali, protegendo a casa onde os dois viveram uma bonita e intensa vida por quase seis décadas.

     Ele não chorou naquele dia, nem resmungou como de costume quando algo lhe contrariava. Apenas ficou sem entender por que ela partiu em completo silêncio e, justo, num tempo em que a vida seguia sem qualquer desgosto... Fosse naquele difícil período em que, quando havia almoço na casa não tinha janta, ou vice-versa - ele até entenderia. Ou fosse nas épocas de graves atritos amorosos e afetivos que todo casal enfrenta... Ele pensou: Se nós tivéssemos filhos, como eu sempre quis, certamente agora eu teria com quem conversar e a quem pedir ajuda. Mas, numa solidão dessa, o que poderei fazer?... Nada! - ele mesmo respondeu e foi direto pra cozinha, onde acendeu o fogo e preparou um café bem forte, uma tradição da casa. Fritou dois ovos, pegou pão no armário e comeu bem devagar.

     Alimentado e depois de meia hora de descanso para o estômago, ele saiu para o tradicional passeio da manhã pelos três quarteirões do centro da pequena cidade de onde ele nunca se ausentou por toda a vida. Passou pela calçada da sinuca de Geraldino, seguiu pelo beco da farmácia de Seu Rocha, dobrou à esquina do Ginásio São José, foi até o cinema que ficava noutra esquina e, depois, voltou pelo mesmo trajeto. Durante todo o passeio, ele cumprimentou velhos amigos e amigas que responderam com a mesma amabilidade aos cumprimentos.

     Já em casa, de volta, ele só estranhou uma coisa: por que ninguém lhe perguntara pela esposa, visto que aquele foi o primeiro passeio que fez sozinho ao longo de tantos anos?... - Será que todos na cidade já sabiam que ela iria me deixar - perguntou a caminho do chuveiro. Perguntou e nada mais disse... Depois do banho, ele tomou o comprimido diário para controlar o diabetes, ingeriu duas cápsulas de reposição de vitamina D, diluiu num copo d'água uma colher de fibra alimentar "zero calorias" que ajudava no funcionamento do intestino, pôs embaixo da língua o comprimido controlador da pressão arterial e, por último, teve bastante dificuldade para aplicar, deitado na cama do casal, a pomada que lhe aliviava as terríveis dores e inchaços da crônica hemorróida...

     Já passando das dez horas da manhã, restava agora aguardar a entrega da marmita do almoço, como também já era rotina na casa fazia tempos. E só então ele atentou para um detalhe: que a marmita sempre era almoço pra dois e naquele dia ele não se lembrou de alterar o pedido.

- Tem nada não - ele disse -. A parte da comida dela eu coloco depois para o gato.

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