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Use A Passagem Subterrânea, conto de Lêdo Ivo


     Da esquina, dirigi-me diretamente para a amurada da praia. Era pouco mais de meio dia, e a claridade doía-me nos olhos. Eu me sentia incomodado pelo resplendor da paisagem, que me sonegava sinais luminosos, ramos de árvores, calotas de automóveis, uma verruga no rosto lívido de um guarda-civil. No íntimo, desejava que tudo estivesse ao alcance de minha observação, para poder usufruir a totalidade do instante. Fulgindo e refulgindo, o tempo que eu ia atravessando, enquanto meus pés se moviam no asfalto da alameda, parecia negacear, desviar-se de mim como uma onda va dia no mar grande. E eu ia avançando.
     Sentia achar-me do lado de fora das coisas e da vida. A ambulância passou pela outra alameda e as crianças de um ônibus escolar começaram a imitar a sereia roufenha. Vi também o mendigo. Estava alinuma das primeira linhagens da terra catando alguma coisa no chão. Mas tudo isso passava por mim sem me abalar: coisas turbulentas, era como se fossem sobras de um outro mundo, que por excesso de luminosidade transbordassem na minha perpectiva.
     Os bondes e automóveis também compartiam daquele indesejável transbordamanro. Iam cheios, e alguns dos seus passageirros, vistos de relance, dedicavam-se às tarefas mais estranhas ou provisórias: um, bem almoçado, palitava gostosamente os dentes e engolia deliciado os detritos; outro lambia um sorvete vermelho. Havia um padre, que não lia o seu breviário, pormenor que me seduziu por um momento, dando-me a impressão de estar fitando uma criança incompleta. E havia uma camisola pendurada numa janela, o grito de um garrafeiro, o gesto da manicura que, no entreaberto salão de beleza, ia, muito lentamente, tornando uma unha a,marelenta em algo cintilante como uma concha marinha. Havia o mundo, com o seu grande aparato: drogas jaziam nos frascos das farmácias, campainhas tocavam nos apartamentos, a relva crescia sub-repticiamente nos canteiros dos jardins, uma abelha zumbia porque o dia era feito de ouro. Longe, naquela janela escancarada para uma paisagem cada vez mais pura e redonda, uma mulher levantava o braço diante do espelho e contemplava a axila raspada. Era como se eu, o momentaneamente apressado, o estrangeiro, a estivesse vendo, ouvindo-lhe a respiração feita mais pela boca ( pois era verdade ela sempre temera operar as adenóides) .
     Eu não avançava como um cego.Conhecia o terreno que estava pisando. Sabia que o jornaleiro da outra esquina, no momento em que lia a notícia alucinante do primeiro vespertino chagado à sua banca, imaginava que ele também podia ter esganado aquela mulher. Seguindo por um momento a sombra do avião achatada no morro, eu avaliava o que fluia nos arredores, captava a essência furtiva dos instantes.
     Depois de ter atravessado a segunda alameda, segui pelo jardim. O sol ardia, fogueira desatada e azul. Eu agora estava sozinho, ante as duas pistas de velocidade. Os carros iam e vinham, retos, vertiginosos. Mais de uma vez, estive a atravessar a pista, mas um automóvel cada vez mais perto de mim me prendia, cauteloso, à beira do passeio. Comecei a caminhar,como se, assim procedendo, me fosse afastando dos veículos velozes. Foi quando parei diante da grade pintada de azul e de uma grande boca de cimento rasgada no chão. Li a placa: "Use a passagem subterrânea."
     Bastaria descer os degraus e mergulhar naquele buraco para sair além da segunda pista, precisamente na amurada junto ao mar. Por um instante assaltou-me a ideia louca de que se me aprofundasse naquele túnel, não recuperaria a luz solar. Haveria de dissolver-me lá dentro, desintegrado, feito aragem. E o medo de perder-me tornar-me leve e fluido, fez-me recuar. Não, não podia diluir-me na sombra. Mais do que nunca, eu tinha o direito de estar vivo, naquele momento.
     Quase correndo, atravessei as duas pistas, desviando-me dos carros. Achava-me agora junto à amurada, respirando aceleradamente, cheio de uma feroz alegria, de um arrogante desejo de viver, como quem escapa de uma barragem de fogo.
     Eu chegara onde queria. Perto do poste de parada de ônibus havia uma grade azul e uma sequência de degraus que se iam sumindo dentro da terra. Era a outra boca da passagem subterrânea. Reli a inscrição e, de repente, estremeci, lembrando-me das tardes de domingo de minha infância, quando ia passear no cemitério e ficava a soletrar nomes de mortos nas lápides avariadas.
     "Use a passagem subterrânea." Talvez eu tivesse lido aquele letreiro em algum sonho. Possivelmente, sonhara estar procurando uma passagem subterrânea que me possibilitasse alcançar o outro lado de uma pista cruzada incessantemente pelas procissões de veículos. Não a encontrara, o sonho se esvaírra dizimando minha aflição de pedestre, e ali estava a grade azul tão procurada.
     Enxotei aquela fímbria de sonho. Acorado, lúcido, não precisava de nenhum resíduo de noite,quanto era escuro e noturno se desgastava diante de mim, minuciosamwnte descarnado, como num almoço de peixe o denso robalo se transforma num desenho de espinhas.
     Estava do lado do sol e da vida, e séculos ainda vazios juncavam meu futuro. E era simples explicar tudo isso: eu amava. Fora o amor que me fizer a atravessar as alamedas, sentir o sol jorrar-me sobre a cabeça como tépida chuva de diamantes, deliciar-me com uamfirtiva aragem sob a copa das emendoeiras, mirar o trapo que o mendigo acrescentava ao pecúlio. Eu estava amando. E, além de amar, eu viera para a amurada a fim de encontrar-me com ela. A claridade do sol varria a calçada larga, cujos ladrilhos imitavam o sinuoso das ondas. Virei-me para o lado do mar. O bonde aéreo avançava, lentamete, em direção ao morro escarpado. Tive a ideia de ir passar uma tarde com ela entre os arvoredos daquele morro. Muitos dos que se amavam faziam assim, procuravam solidões e verduras e pedras e paisagens vertiginosas.
     Ao voltar-me para o lado das alamedas, estava certo de que ela se encaminhava ao meu encontro. Realmente, ela se aproximava, e parecia vir nadando no ar fulgente, que tudo era fundo de mar, com o seu arvoredo submerso.
     E ela nadava, nadava, nadava. Ou então vinha dançando, cheia de uma distante e casta voluptuosidade. Por mais estranho que parecesse, não havia carros nas pistas. Ela podia atravessá-las sem alterar a harmonia dos seus movimentos.
     Quando ela chegou perto de im, estendi-lhe mudamente ambas as mãis. Ficamos parados olhando um para o outro. Eu sabia o que lhe custara aquele encontro: a astúcia, as artimanhas, os fingimentos, a discrição, o medo contido. E meu desejo era gritar, bem alto, o seu nome, mas para que só ela ouvisse; era chamá-la, solenemente, embora ela estivesse tão perto de mim, com o seu rosto meigo e enigmático.
     Os carros continuavam passando. Com o olhar ela mediu a paisagem e tornou-se mais viva, em mim, a sensação de que ambos habitávamos, com a nossa presença, um imenso espaço vazio de humanos. Todos passavam, nos veículos velozes. Somente nós ficávamos ali, porque somente nós estávamos amando a imensa cidade medusada pela pressa e lambida de fuligem.
     Ela não disse nada, mas adivinhei em seus olhos o temor de ser reconhecida por um daqueles passageiros dos ônibus ou carros. Ninguém deveria ver-nos juntos. Decerto, o sol nos diluia a transfigurava, tornando-nos irreconhecíveis a pequena distância mas nenhuma cautela seria excessiva para protegê-la.
     Para onde ir?Era imperioso que nos distanciássemos o mais possível dos outros, consumíssemos a tarde numa redoma de solidão e sigilo.
     Foi nesse momento em que, em silêncio,tecíamos um tapete dos idílios, que nossos olhos se fixaram na placa e nas finas letras azuis.
     "Use a passagem subterrânea."Lembrei-me da várias ocasiões em que a esperara ali mesmo, perto da grade azul. E agora zumbia dentro de mim como uma colmeia de certezas alegres, a convicção de que ninguém, absolutamente ninguém usava apassagem subterrânea. Todos, os preguiçosos ou os açodados, atravessavam as pistas cruzando o asfalto reluzente. E a explicação era simples, matemática: ninguém usava a passagem sibterrânea porque ninguém amava.
     Nossos olhares se encontraram - mas não um com o outro, e sim nas letras azuis. Como peixes lentos, que vão evoluindo, quase imperceptivelmente nas águas do redondo aquário, fomos descendo os degraus. Éramos como certos namorados de cidadezinhas do interior, que sobem piedosamente os degraus da igreja na colina, e encontram lá em cima uma solidão mofenta e cúmplice.
     Descidos os degraus, fomos andando pela passagem subterrânea. Nossos passos nem ressoavam, como se os mosaicos não estivessem habituados aos sonoros pés das criaruras.
     "Use a passagem subterrânea."O letreiro cantava dentro de mim, cantava dentro de nós, era magia. E a gentil advertância municipal se tornava ambígua, e seu sentido mudava, entre dois passos amorosos, em confidência. O munícipe cauto poderia perfeitamente cruzar a passagem subterrânea gastando apenas alguns segundos entre as duas bocas de cimento. Mas nós não tínhamos pressa, nem buscávamos convívio, nem queríamos os curiosos olhares alheios sobre nós. Pertencíamos à prosápia dos lentos, nossos gentos poderiam durar horas.
     "Use a passagem subterrânea."As abelhas cantavam no ouro da tarde imensa. Então, paramos um diante do outro. Ela sorria, o rosto meio inclinado, quase expectante. Uma aragem miúda entrava pela boca do túnel, trazendo o mar filtrado e a fumaça urbana. Era tudo o que restava do mundo: um aroma que fundia o alcatrão com a maresia das ilhas. Tirante isto - um universo de luzentes ladrilhos. E, dentro dele, estávamos nós, os que amavam. Pois esta era a verdade: nós nos amávamos. Bichos instatâneos, sem biografia, desligados de tudo, desmemoriados, alí estávamos, dóceis e lentos munícipes. Ninguém viria molestar-nos. O mundo transfluía, em giro e suor, em estritor e saliva, mas linge dos ladrilhos que nem sequer refletiam nossas figuras anônimas e amorosas.
     Lembrei-me do mendigo que recolhia um trapo jogado no chão. Agora estávamos ali a guardávamos também um tesouro perdido e reencntrado. Sozinhos, cavávamos a miracuosa jazida do mundo, colhíamos o dourado fruto da terra. Nadadores, íamos até o jardim de coral, na tarde de água.
     Éramos os que amavam, os efêmeros desertores do fuliginoso engano da vida. Por isso estávamos ali, mudos e vagarosos, usando a passagem subterrânea.

Em: O Flautim  e outras histórias cariocas, Ed.Bloch, ano 1966, págs.33-40

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