Sempre desejei que outro ser humano me conhecesse de verdade. Às vezes, passamos anos convivendo com anseios que não conseguimos nomear. Até que a fenda surge no céu, se alarga e nos reela para nós mesmos, como a pandemia fez, pois foi durante o confinamento que comecei a esquadrinhaar minha vida e a dar nome a coisas há muito não nomeadas. No começo, jurei que aproveitaria ao máximo esse isolamento coletivo; se a ínica escolha era ficar em casa, então eu iria passar óleo todos os dias nas pontas cada vez mais finas de meu cabelo, beber oito grandes copos d'água, correr na esteira, me dar ao luxo de dormir muitas horas e massagear meu rosto com séruns caros. Escreveria novas matérias a partir de anotações de viagens antigas que nunca tinha usado e, se o confinamento durasse tempo suficiente, talve finalmente tivesse fôlego necessário para escrever um livro Mas em pouco tempo, já estava dando voltas dentro de um poó sem fundo. Era um turbilhão de palavras e alertas, e senti que todo o progresso humano estava sendo revertido até atingir um estágio de confisão ancestral que, àquela altura, já deveria estar extinto. Não toque no rosto, lave as mãos, não saia de casa, passe álcool em gel, lave as mãos, não saia de casa, não tique no rosto, mas certa manhã a palma da minha mão roçou na minh bochechae e congelei, com a torneira ainda aberta.
Em: A Contagem dos Sonhos, Chimamanda Ngozi Adichie, Ed. Cia da Letras,2025, págs. 9-10
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