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O Que Estou Lendo? O Caminho Sem Aventura, Lêdo Ivo. Primeira página

     Durante o momento em que, tendo já apagado a luz, eu entrecerrava os olhos, aguardando um sono que  não vinha, era que me afluiam à memória todos os acontecimentos em que fôra jogado. Êsses fatos vinham em dsua maioria decepados, partidos, as imagens misturando-se à medida que o aniquilamnto do adormecer me tomava. Principalmente as lembranças da infância se transfiguravam, vestindo-se de tonalidades que eu sabia não serem reais, mas forjadas pela imaginação, surgindo dessa maneira como coisas criadas, afastando-se de suas linhas lúcidas para espalhar-se e desenvolver-se numa atmosfera de sonho. A imagem de Bárbara que flutuava em minha lembrança não era decerto a presença física de minha amiga, mas se tratava de Maria Eleonora, sua mãe, a pessoa que modificara, com sua influência e existência que eu levava, e se projetara de um modo considerával em minha vida.

     Maria Eleonora era uma dessas criaturas que, mesmo desaparecidas, permanecem em nosso espírito.

     Lembro-me de que ela me beijou pela primeira vez quando de uma visita que fizera a nossa casa. Naquele tempo, eu poderia ter seis anos, mas guardo a recordação do beijo como se se tratasse de um acontecimento recente. Os outros beijos, recebidos após, e mesmo os que eu dei, em momentos diferentes, nada mais foram do que a reconstituição do beijo de Maria eleonora.

     Quando vim conviver com Bárbara, eu contemplava nela a imagem perdidada de Maria Eleonora, e sua beleza era realmente a beleza de Maria Eleonora, apresentand-se como um prolongamento, através do tempo, de um ser possuido das mesmas qualidades físicas, temperamento e atitude, de alguém que tivesse vencido a morte.

Primeira página de: O Caminho Sem Aventura, romance de Lêdo Ivo. Inst. Progresso Editorial, São Paulo 1947.

Nota: o blog manteve a grafia original do ano da publicação, 1947, por essa razão algumas palavras estão acentuadas.


De Lêdo Ivo neste blog:

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Dois Amigos

Soneto de Abril

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