Primeira página de Memórias de Martha
Tenho uma ideia vaga da casa em que nasci e onde morei até aos cinco anos. Um ou outro canto ficou desenhado em meu espírito; quase tudo, porém, se perde num esboço confuso.
Assim as cenas. Entre tantas coisas, tantos tipos e tantas palavras que se refletiram nas minhas pupilas de criança, ou que vibraram em meus ouvidos, que ficou?
Bem pouco!
Lembro-me, por exemplo, de um ângulo de quintal, onde havia um banco tosco e um tanquezinho redondo que servia de bebedouro às galinhas. Era ali que eu lavava as roupas das bonecass. Lembro-me também do papel de salinha de jantar, cheio de chins(1) e de quiosques; de um vão de janela, onde se armava o presépio de Natal.
Os quartos, os móveis, os criados, de tudo isso me recordo às vezes, mas numa fugacidade tal, que não me fica a sensação de saudade, mas a da dúvida.
Das cenas lembra-me a da mudança: um homem zangado mandando pôr os nossos trastes(2) na rua, e minha mãe chorosa aconchegando-me a si uma vez em que entrei numa alcova onde estava um homem morto, muito magro, lívido, estirado sobre a cama, com um hábito escuro de cordões brancos, as mãos entrelaçadas e o queixo amarrado com um lenço. Era meu pai. tive medo; minha mãe obrigou-me a beijá-lo. O frio e o cheiro do cadáver deram-me náuseas; quis sair, ela prendeu-me nos seus braços nervosos, supus então que me quisesse fechar com o defunto no mesmo caixão que alí estava já escancarado, e fugi em um arranco para o quintal.
Nunca a luz me pareceu tão forte nem o ar livre tão bom.
Com as costas unidas ao muro, os olhos secos de espanto, sufocando as palpitações do meu coração, como se a bulha (3) dele bastasse para chamar sobre mim a atenção de gente da casa, fiquei muda, sentindo por todo o corpo a frialdade daquele cadáver, com a sensação de que me iriam buscar para me embrulhares na sua roupa de espectro, largam escura, cortada pelos traços longos dos dois cordões brancos.
1- Chins: chineses
2-Traste: móvel de pouco valorr na casa
3-Bulha: rebuliço, agitação
Leia também: Sobre o livro:A Falência, Júlia Lopes de Almeida, postagem de janeiro de 2025.
Sobre a autora:
Júlia Lopes de Almeida nasceu em 24 de setembro de 1862, no Rio de Janeiro. Era ainda criança quando sua família se mudou para Campinas, onde a autora escreveu seus primeiros textos. Mais tarde, foi morar em Portugal, onde se casou com o poeta Filinto de Almeida (1857-1945).
A romancista, que faleceu em 30 de maio de 1934, no Rio de Janeiro, escreveu romances com traços realistas e naturalistas, como A falência, sua obra mais conhecida. Assim, foi uma bem-sucedida escritora, que defendeu a educação para as mulheres, o divórcio e o voto feminino.
Em: Memórias de Martha, Via Leitura 2024, págs. 5-6
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