No início dos anos 1900, minha família vivia da agricultura em uma pequena aldeia no interior do Japão e assim como muitos outros camponeses da região, meus pais trabalhavam sol a sol para cultivar arroz e vegetais em uma pequena propriedade de terra que mal era capaz de gerar sustento para os filhos e filhas. As colheitas eram cada vez mais escassas, quando as indústrias com seus dentes pontiagudos e garras afiadas, devoravam definitivamente as lavouras e tudo mais que ficasse em seu caminho. A promessa de empregos nas fábricas e melhor oportunidade de educação para os filhos não passou de um sonho que aquelas comunidades não viveriam para realizar.
Enquanto menina, eu pouco entendia o que se passava no mundo dos adultos. Fui criada dentro de uma estrutura familiar rígida e tradicional, em que a disciplina e o respeito aos mais velhos eram regras indiscutíveis. O silêncio de minha mãe e a rudeza de meu pai, me mantiveram afastada da realidade cruel a que éramos submetidos. Como filha mais nova, minha vida se resumia a ajudar minha mãe nas tarefas de casa e me dedicar com devoção à descoberta da escrita e da leitura, carregadas de nossa cultura tradicional.
Com o avançar do tempo e a falta de perspectivas, uma vida nova em um lugar distante passou a ser uma opção a ser considerada. Meus pais, se entusiasmaram com relatos de outros que partiram antes de nós e se convencerem de que uma terra promissoramente mais fértil nos traria as oportunidades que nos foram negadas em nosso país. Toda nossa mudança foi acomodada em dois baús pequenos e uma maleta de viagem. A mim coube levar apenas um velho caderno de caligrafia que me acompanharia por toda a vida. Suas páginas, hoje amareladas pelo tempo, receberam o último registro na manhã em que deixamos nossa terra rumo ao Brasil. Naquele momento, o sentimento que me invadia ainda não tinha nome, mas já machucava e doía. Entre lágrimas infantis, reproduzi em meu caderno o haikai que marcou minha partida:
“Nem sequer três dias
Este mundo vê passar –
Cerejeira em flor!”
Vivi duas vidas em uma. Da minha infância no Japão mantenho comigo o respeito à minha origem e às tradições, a resiliência do meu povo frente às adversidades, o respeito aos mais velhos. A cerejeira imortalizada em meu caderno de escrita me recorda que a vida é feita de instantes, que ciclos se encerram para que outros surjam. Que eu, assim, com suas flores, cairei inevitavelmente quando meu ciclo se cumprir, embora me sinta forte e imutável, a montanha que habita em mim sucumbirá no momento devido.
Aqui, aos oitenta e três anos, descanso a palidez de minha pele senil sob a sombra de um reluzente ipê, amarelo ouro, amarelo vivo, amarelo Brasil. Abraçada a meu velho caderno, seguro entre os dedos magros uma pequena flor que me aquece o coração dolorido. Neste país entrelacei minha vida, meu sangue e suor com os de tantos outros imigrantes que aqui chegaram na esperança de tempos melhores. Melhorias essas que recebi, que vivi. Minha segunda vida, não foi marcada por tristezas ou privações. Aqui a menina japonesa se tornou mãe e avó. Com a intensidade e a alegria natural das relações entre as pessoas deste lado do planeta, aprendi a expressar meus sentimentos e, algumas vezes, me permiti ousar. A saudade, essa que sinto, não está relacionada ao que vivo hoje, ao que conforta meu coração idoso, ao que me levanta nas quedas. A saudade que sinto, é da menina sem medo, daquela que começava a transformar letras e símbolos em palavras. Meu íntimo é um caldeirão de incongruências. Em meu peito a gratidão lateja, embora mais ao fundo, em meu coração a saudade inflama. Ambas são formas de expressar o mesmo desejo palpável de paz, de pertencimento. Me conecto com minhas duas vidas, que apesar de dúbias, me constituem como nenhuma outra pessoa. Sou única, quebrada e inteira. Luz e sombras. Menina e mulher. Cerejeira e Ipê.
Um olhar sensível sobre o foi, o que ainda é, e o que ainda pode ser.
ResponderExcluirPriscila Aquino, ler os seus textos faz com que o interesse pela leitura se aguce! Continue escrevendo!
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