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Vasto Mundo, conto de Maria Valéria Rezende


     A moça chegou do Rio. Logo se vê... tão alvinha! Saiu daqui miúda, não diferenciava em nada das outras meninas da escola minicipal. Foi o padrinho que a levou. Voltou essa moçona. Veio passar o São João. No meio das outras moças, na frente da igreja, ela agora diferencia até demais. O vestido bonito, mais altura, as unhas compridas e vermelhas, movendo os braços, dando voltas e requebros enquanto fala. E fala sem parar.  As outras mais matuts ainda unto dela, são apenas molduras para o quadro. Para os olhos de Preá, nem moldura. Não existem. Não existe mais a igreja, a praça, a vila, nada. Só a moça.

     Preá outro nome não tem. Quem poderia dizer era a velha, mas morreu sem que ninguém se lembrasse de perguntar. Para a maioria do povo de Farinhada, hoje parece que ele sempre esteve ali, que sempre foi assim, uma coisa de vila como a igrea, a ponte sobre o riacho, os bancos de cimento da pracinha. Mas alguém se lembra;  chegou um dia com a veha que chamava de avó. meio cega, meio mouca, meio fraca do juízo.  O menino, não se sabe que idade tinha... alguma coisa entre oito e treze anos. Quem pode saber? Fraquinho, enfezadinhi como todo filho da miséria. Disseram que vinha do Juá. Qualquer canto da Paraíba tem rua, fazenda, sítio com esse nome. Também ninguém perguntou muita coisa: uma velha perto de morrer e um menino vivendo só de teimoso...Neco Moreno deixou ficar nos restos da casinha de taipa e palha, no canto do sítio dele, já bem junto do arruado. Preá amassou barro, tapou buracos, pediu palha daqui e dali, vivia ajeitando o telhado. Continuou sempr assim, aquele capricho com a casa, alisando as paredes, reparando rachaduras, até caiação... Preá faz tudo sozinho, sempre fez tudo sozinho.

     Preá não sabe que coisa é essa que  está acontecendo dentro dele. Começou quando bateu com os olhos na moça. Uma queimação dentro do peito, uma nuvem na vista que esconde tudo o que não é a moça, os ouvidos moucos para tudo o que não seja a voz dela e um sentimento que parece tristeza, mas não é. Pelo menos não é daqiela tristeza de quando a avó morreu nem de quando o cachorro sumiu.  Preá não sabe o que é. Doença também não é, que muitas vezes ele ficou doente e ra coisa diferente. Pode ser o juízo enfraquecendo. O povo já diz que ele é fraco do juízo igual à avó. Agora ele está ficando também cego e mouco, igual à avó. Igual não. É diferente de tudo o que ele conhece.

     A morte da avó mudou pouca coisa na vida de Preá. A tristza que lhe deu, de pouco em pouco foi se acabando. De noite, sozinho, a casinha parecia maior e mais vazia, por uns tempos.  No mais, ficou tudo igual, só que não precisa mais levar lata de comida para casa. Encosta na porta da cozinha de qualquer um, recebe um prato com o que vier, come ali mesmo, "obrigado, dona, até amanhà". Desde o começo houve uma espécie de contrato, nem escrito nem falado, entre Preá e o povo de Farinhada. O menino fazia qualquer serviço que pudesse, para quem pedisse, sem botar preço e nem receber pagamento. Do outro lado, ninguém lhe negava um caneco de café, um prato de comida, uma roupa velha ou, quando maiorzinho, uma dose de cana ou uma cartira de cigarro barato. Bom como ninguém para fazer mandado que tenha pressa, levar recado urgente, levar pacote, buscar a ferramenta ou o carretel de linha que falta para terminar um trabalho. Foi crescendo, aprendendo outros serviços, artes, muita coisa      pode-se pedir a ele. O contrato com o povo continua o mesmo. Preá, fiel, sempre na pracinha ou na rua do meio, ao alcance de um grito. Quando não tem serviço encosta-se na parede... espera. Jamais sai da vila. Sua casinha na ponta da rua é o limite do mundo. num mundo rural de Farinhada, Preá éurbano, da parca urbanidade da vila.

     O dia de Preá, que começa quando a barra do dia raia por cima da Serra do Pilão, vira de novo noite quando a moça aparece na praça, na manhã alta. É como estar dormindo e sonhando coisa nunca vista, beleza nunca imaginada. Muitas vezes já não ouve quando gritam por ele, já não vê quando lhe acenam, já não fica  encostado na parede da bodega esperando chamado, perde-se a caminho dos mandados, engana-se nos recados. Perdeu todos os rumos, menos o da moça. No rumo dela, desvia-se de todos os caminhos, vai cada dia mais longe de tudo, mais perto dela. Já se começa a comentar na vila que Preá não é mais o mesmo. "Está ficando mais leso, preguiçoso esse menino..."

     A moça lá no banco da praça, debaixo do jambeiro, cercada pelas outras que querem ser como ela, falando, gesticulando, mostrando-se.  Os rapazes voltam mais cedo do roçado, banham-se, perfumam-se, vestem a roupa de São João e vão vê-la na esança de serem vistos. Preá não teve roupa nova no São JOão, por fora é o Preá de sempre, por dentro só a luz da moça. Preá mariposa, chega cada dia mais peerto do jambeiro, mais perto dela. No princípio ninguém notava o menino ali parado, os olhos presos na moça alva. Ele tem a invisibilidade das coisas que sempre estiveram presentes. Mas quando Dona Inácia se cansou de chamar por ele, sem rsposta, foi que toda a gente viu: "Preá está lá, feito besta, olhando pra moça."Eh, Preá, está gostando da carioca? Olhe só, Leninha, Preá está louco por você. Quer namorar, Preá? "E o coro: "Preá apaixonado! Preá apaixonado!" Ela achou graça, fez sinal: "Vem cá, meu bem, senta aqui perto de mim." Ele foi, levado pelo vento, pelo olhar...pelas pernas não foi, que não as tinha mais, nem braços, nem corpo, só os olhos e o coração feito zabumba. Não ouviu os gritos, o riso, a mangação. Viu a moça olhando para ele, rindo para ele a mão macia no joelho dele.  "Se voc6e gosta mesmo de mim, Preá, vou namorar com você. Só com você e mais ninguém. Mas tem que fazer uma coisa  pra mostrar que gosta mesmo de mim: domingo quero ver vocsubir na ponta da torre da igreja e me jogar um beijo la de cima."

     Farinhada toda já sabe do amor de Preá e da exigência da moça. Apostam que ele sobe, que ele não sobe.  A torre da igreja é alta e fina como uma agulha como as da torre do padre Franz, que a mandou fazer. Dona iNácia diz que é maldade da moça, diz a Preá que não suba. Mas o povo espera o domingo com mais interesse do que o clássico jogo de sábado contra o Itapagi Futebol Clube. "Preá é leso, vai subir mesmo..."Erlinda está fazendo coxinhas para vender na praça durante o acontecimento. Disseram que vem um caminhão de gente do sítio Ventania só para ver.

     Preá não viveu quinta, nem sexta, nem sábado. Nada viu, nada ouviu, nem dormiu, nem acordou. Pairou desencarnado em alguma dimensão misteriosa. Voltou ao mundo com o badalar do sino. Não v6e a praça enchendo-se de gente, os gritos, assobios e aplausos. Sobe, para cima, mais para cima. Não sent as palmas das mãos escalavradas, não sente as plantas dos pés em sangue, não tm medo. Preá é leve, forte, pode tudo, tem asas. Mais , um pouco mais... lá em cima, a moça, o beijo. Não percebe que aos poucos a praça silencia, tensa, admirada. Agora, mais um pouco e sua mão toca a cruz, agarra-se. Preá respira todo o ar do mundo e olha: lá em baixo o carro preto, a mala, a moça acenando. Só quando o carro que leva a moça  desaparece ao longe, numa nuvem de poeira, é ue o olhar de Preá, liberto, encontra o horizonte. Lá em cima passeia, vaga, vê. E Preá descobre que é vasto o mundo.


Em: 13 dos Melhores Contos de Amor da Literatura Brasileira. Org.: Rosa Amanda Strausz, Ediouro 2003, págs,15-18

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