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Auto de Belém, poema de Maria Julieta Drummond de Andrade

Uma gruta,na solidão da noite hebraica.A estrela tremeluz, indecisa:

- Sou Estrela de outros céus,
mas vim brilhar em Belém.
Por que cintilei, ao léu,
até aqui. Para quem?

     O Anjo entreabre as asas, com timidez:

-Sou Anjo do firmamento
e vim proteger Belém.
Parece que há louvamento,
hoje, aqui. Mas para quem?

     Em plena escuridão, o Galo cocorica, como pressentindo a madrugada:

- Sou Galo de longes terras,
mas vim cantar em Belém.
Por que cruzei tantas terras,
sem milho algum. Para quem?

     O grito do Galo corta as nuvens como um gemido.
A Estrela , luziluzindo, é menos que um vagalume, na altura. O Anjo vê a ave, a crista inquieta. Seu puríssimo raciocínio deduz:

     -É um galo músico, desses que cantam de maneira particular
     Nenhum ruído na gruta, até o ar ficou imóvel. Eis que se escutam barulhinhos na relva: são as Ovelhas chegando. A primeira bale muito devagar:

- Sendo Ovelhas de outras ervas,
vimos pastar em Belém.
Sabemos que somos servas,
mas não sabemos de quem.

     A segunda, a terceira, o pequeno rebanho se junta à boca da gruta, enquanto o Galo coça o peito com o bico. Pensa em galinhas, na ração que não comeu, na manhã que tarda tanto, e tem vontade de dormir. Alguma coisa, contudo, o mantém expectante, alerta.

     Ao longe, na vereda vazia, aparece o Pastor:

- Sou Pastor de outros rebanhos,
mas vim pascer em Belém.
De que lugares d'antanho
me trouxeram? Para quem?

     Aproxima-se das ovelhinhas que, ao reconhec6e-lo, envolven-no longamente num olhar de doçura e dúvida. O Pastor gostaria de tranquilizá-las, mas não entende a noite, a gruta, a força imperceptível que o empurrou até ali. Ficam todos em silêncio, sob a luz intermitente da Estrela.

Na lonjura das montanhas, o vozeirão do Camelo é quase inaudível:

- Sou Camelo do deserto,
vim ruminar em Belém
e sinto que já estou perto
de alguma coisa... De quem?

     Três homens coroados surgem atrás do Dromedário.
     Caminham com dificuldade, curvos. Parecem exaustos. Entoam em conjunto:

- Somos Reis de outros impérios,
andamos até Belém.
A noite é puro mistério.
Buscamos alguém... mas quem?

     Um negro de tanga empurra o Camelo; os soberanos se acercam sem pressa. O Pastor e as Ovelhinhas não se mexem. A Estrela, o Galo, o Anjo percebem uma vibração ligeira a princípio, pouco a pouco mais viva, forte, aguda, elétrica, tomando conta de seus corpos etéreos e alados. Pára a caravana real. Todos têm subitamente a certeza de que a escuridão se esvaiu, que o que estava ermo se povvou, que cada gesto, cada movimento que fizeram ou farão de agora em diante estará prenhe de sentido, para sempre.

     A gruta se ilumina. Deitado mansamente, o Boi muge:

- Diz o coração bovino
que sou o Boi de Belém.
Tocou-me o alto destino
de ver nascer todo o bem.

     O Burro, do outro lado pausadamente:

- Não sei de que campo venho,
sou o Burro de Belém
e zurro a sorte que tenho
de ver nascer nosso Bem.

     A luz é cada vez mais intensa no interior da gruta, onde as Ovelhas, o Pastor, o Negro e seu Camelo, ostrês reis, o Galo e todos os bichinhos do mundo se aglomeram, irmanados pela paz que os habitas. Um homem e uma mulher, vestidos de panos rústicos, estão ajoelhados diante de uma Criança séria,de olhar transparente:

- Sou o Menino de Deus,
que vim nascer em Belém.
Aos males dizei adeus,
em mim trago vosso Bem.


Em: O Valor da Vida, Maria Julieta Drummond de Andrade, Ed.Nova Frontiera 1982. págs.111-114

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