Durante minha adolescência, meus pais adoravam oferecer jantares. Tínhamos em torno de um porsemana, com convidados diversos.
Um dia no almoço, quando eu tinha 17 anos, meu pai anunciou que na semana seguinte teríamos um convidado muito especial para jantar, o senhor João Rosas, ex-ministro da Justiça de Portugal, acompanhado de vários amigos. Léa, minha madrasta, que gostava mais ainda de festas do que meu pai, lambeu os beiços e começou a pensar no menu.
Após muitos preparos e ansiedade, chegou o dia do famoso jantar. A casa estava linda, cheia de rosas, que era o tema da noite. Os convidados chegaram em torno das 20 horas e ficaram conversando animadamente na sala de visitas.
Dentre eles o senhor Rosas, como era conhecido, um homem diminuto de nariz aquilino e porte nobre, com um lenço amarelo de seda elegantemente dobrado no bolso de seu blazer azul-marinho. Meu pai, anfitrião exemplar, aproximou-se do convidado de honra.
João, o que posso lhe oferecer para beber?
- Uísque está ótimo, Izaac.
Em segundos, meu pai estava de volta. Após tomar um gole, o ministro olhou para meu pai com olhos arregalados.
- Izaac, isso aqui não é uísque, não. É chá!
- Como assim, chá? Tem certeza?, disse meu pai.
- Sim, claro. É um ótimo chá, mas é chá, afirmou o ministro.
- Impossível! Deixa eu provar.
Meu pai pegou o copo das mãos do ministro.
- Meu Deus, você tem razão. É chá mesmo! Mas como que isso pod... Um momento, João, deixa eu ver o que aconteceu.
Meu pai foi correndo até o armário de bebidas para provar mais uma vez o uísque que tinha dado ao ministro. Chá. Seus olhos bateram nas outras garrafas abertas de uísque. Chá em todas elas. Horrorizado, provou da garrafa aberta de conhaque. Também era chá. Todas as garrafas abertas com bebidas cor de âmbar tinham sido preenchidas com chá. Meu pai quase implodiu.
Sem perder tempo, meu ele foi até a cozinha. Lá estava a Maria, nossa cozinheira, cantarolando um hino a Iemanjá ou alguma outra divindade do candomblé. Uma senhora negra dos seus 50 e muitos anos que, por seus olhos permanentemente opacos, parecia estar sempre inebriada. Maria nunca tirava o turbante branco da cabeça, e nós sabíamos bem o que aquilo e os cantos significavam.
Nossa cozinheira era uma mãe de santo, sacerdotisa de algum terreiro de macumba nos arredores do Rio. Não que eu tivesse conversado com ela sobre isso. Preferia não tocar no assunto, imaginando que fosse guardiã de segredos que eu preferia respeitar à distância.
- Maria!, gritou meu pai, assustando a senhora, que passou a secar as mãos no avental. Foi você quem bebeu todas as bebidas do armário do banheiro?, disse.
- Quase todas, doutor, respondeu Maria, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
- Como você me faz uma coisa dessas? Você está despedida! Amanhã de manhã você vai embora!
O rosto da boa senhora foi mudando de expressão, até transformar-se numa máscara de ódio. Seus olhos pareciam faiscar de raiva. Meu pai recuou dois passos. Instintivamente, sua mão foi para o bolso da calça, onde guardava sempre um dente de alho. Em seu mundo, o mal podia atacar a qualquer momento. Era bom estar preparado.
- Eu vou, doutor, mas pode se preparar. Esta casa está marcada!, disse Maria.
Na manhã seguinte, Maria me chamou na cozinha. Tinha as malas prontas e pediu que a ajudasse a levá-las até a portaria. Tentei evitar seus olhos, mas não consegui. De repente, ela me pegou pelos ombros e me olhou direto nos olhos.
- Você, menino, você tem corpo fechado. Não se preocupe que nada vai te fazer mal.
Petrificado, consegui dar um sorriso amarelo enquanto me desvencilhava das suas mãos.
Uma tarde, cerca de um mês após o incidente, estava estudando no meu quarto quando senti um calafrio estranho subindo pelas minhas costas. Estranho porque era novembro no Rio e, portanto, já bem quente. Ademais, não costumava sentir calafrios.
De repente, senti um ímpeto de ir até a sala de jantar. A mesa onde comíamos era flanqueada por dois móveis contendo cálices e garrafas de cristal. A cristaleira estilo rococó ficava atrás da cabeceira da mesa, onde sentava meu pai. Com portas e três prateleiras de vidro, continha os cálices de cristal da Boêmia (na atual República Tcheca) que eram “chiques demais” para serem usados no dia a dia. Verdadeiras obras de arte, alguns eram decorados com bordas pintadas a ouro e padrões intrincados esculpidos no cristal colorido.
Do lado oposto da mesa, tínhamos um carrinho de bebidas de bronze, com uma prateleira de vidro onde ficavam várias garrafas de cristal contendo vinho do Porto e licores de diversas cores, cada uma com a sua coleirinha de prata.
Estava em pé ao longo da mesa meio que sonhando acordado quando algo, talvez um ruído bem sutil, fez com que eu olhasse para a cristaleira. Naquele exato momento, a prateleira superior quebrou ao meio e todos os cálices que sustentava despencaram sobre a prateleira de baixo, que também quebrou, colidindo imediatamente sobre a prateleira inferior, numa cachoeira ensurdecedora de cacos de cristal.
Pareceu uma explosão. Em segundos, dezenas de cálices valiosíssimos haviam sido destruídos, quase que pulverizados. Mal tive tempo de piscar os olhos, quando ouvi outro barulho de vidro quebrando, agora do lado oposto da mesa. A prateleira do carrinho de bebidas rachou ao meio, e todas as garrafas de cristal foram ao chão.
Fiquei olhando a cena, paralisado. A devastação era total. A nova cozinheira veio correndo, viu o que tinha acontecido, se benzeu três vezes e desapareceu na cozinha. Foi embora naquela mesma noite.
Tremendo dos pés à cabeça, liguei para o meu pai no consultório.
- Pai, a maldição. Aconteceu! Tá tudo quebrado. A cristaleira despencou bem na minha frente. Depois o carrinho de bebidas, quase ao mesmo tempo!, contei.
- Não toca em nada! Estou indo., disse meu pai.
Aparentemente, nossa Maria não era uma mãe de santo qualquer. Era a própria rainha da macumba.
Passei dias atordoado, completamente confuso. Como algo assim pôde acontecer? Coincidência?
Sim, se fosse apenas a cristaleira ou o carrinho de bebidas. As prateleiras estavam sobrecarregadas, anos de umidade tropical e maresia haviam enfraquecido os pinos de sustentação. Mas ambos quebrando praticamente ao mesmo tempo? E, numa região geologicamente antiga, onde não existem terremotos ou mesmo tremores de terra bem leves?
Pensei que, talvez, algum tipo de ressonância houvesse ocorrido, as frequências de som do cristal quebrando induzindo instabilidades nos outros vidros da sala. Pouco provável. Ou talvez o tremor de um avião supersônico que passou perto? Negativo. Melhor aceitar o que ocorreu pelo que foi. Uma sincronia extremamente bizarra, que Jung e seus adeptos gostavam de chamar de “sincronicidade”. Nenhuma explicação racional, ao menos que tenha imaginado, dá conta do que ocorreu.
O desastre não poderia estar mais relacionado à maldição da Maria, visto que ocorreu justamente com cálices e garrafas de bebida. E o calafrio que senti bem antes, o ímpeto de ir até a sala de jantar?
Não há dúvidas de que fui testemunha de algo que desafia a ordem natural das coisas. Será que Maria me usou como veículo de sua magia? Será que quando me segurou pelos ombros, me olhando com aqueles olhos faiscantes, me hipnotizou de alguma forma? Será que fui eu quem quebrou aquilo tudo como se num transe sonâmbulo e não me dei conta? Acho pouco provável. Não sou muito suscetível à hipnose, e muito menos sonâmbulo. Também não creio sofrer de algum distúrbio de personalidade múltipla, esquecendo o que meu outro eu andou aprontando. Mesmo de longe, eu adorava os belos cálices da Boêmia.
O fato, porém, é que tanto a cristaleira quanto o carrinho de bebidas despencaram em sincronia quase que perfeita. A maldição da Maria foi cumprida.
Qualquer explicação desafia o que chamaríamos de circunstâncias “normais”. Se fui eu quem quebrou tudo e não me lembro porque estava sob algum tipo de transe hipnótico, significa que existem dimensões do meu ser além do meu controle. Muito assustador.
Se, por outro lado, a destruição foi orquestrada por algum tipo de magia sobrenatural, minha visão de mundo precisa ser profundamente revisada.
Se a destruição foi causada por algum efeito perfeitamente natural e eu (e outros a quem contei a história) não consigo imaginar o que poderia ser, significa que existem dimensões da realidade que escapam ao nosso conhecimento.
Essa é minha opção preferida, pois mantém viva a esperança de que temos a habilidade de compreender o mundo ao menos em parte, mesmo quando nos defrontamos com o que aparentemente é incompreensível.
Afinal, a ciência moderna é uma ferramenta poderosa para compreendermos o que existe além do óbvio, para explorarmos aquelas partes da realidade além da nossa percepção imediata das coisas. É na fronteira do conhecimento que a ciência mergulha em direção ao mistério, tentando oferecer explicações do desconhecido através do que é conhecível.
Talvez seja melhor que o mistério permaneça. Nem tudo precisa ser explicado, nem toda pergunta precisa ter resposta.
Se tudo fizesse sentido, a vida seria bem sem graça. Um pouco de inexplicável faz bem, nos deixa um pouco inseguros, imaginando o que pode existir além do possível.
Em: A Simples Beleza do Inesperado, Marcelo Gleiser. Ed. Record, Rio de Janeiro 2016 págs. Editado.
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