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Renovo, conto de Miguel Torga

 
      A Lucinda ? ­ perguntou o Pedro, coberto de suor, lívido, a acabar de sair de uma modorra de morte.
­      Está boa... ­ respondeu a mãe., com a naturalidade que pôde.
­      E porque não vem cá?
­      Isto pega­se, filho. Ela bem queria; eu é que não consinto... Uma onda de tristeza, que lhe embaciou a imagem da namorada, atravessou os olhos febris do rapaz. Depois, exausto do esforço de vir à tona do poço, desceu as pálpebras e caiu na sonolência em que vivia há dias.
     No princípio da epidemia, de ouvido atento, ia vigiando o mundo através do dobrar do sino.
     O som a entrar no quarto abafado e ele a inquirir, inquieto:
­     Quem foi? minha mãe?
­     O Belmiro. ­ O pai ou o filho? ­ O pai. Cuidadosa, a Felisberta varria implacavelmente o caminho de todos os espinhos que pudessem magoar as justas esperanças da mocidade. Só rodeado de gente da mesma geração, nascida e feita nas mesmas festas, nos mesmos magustos e nas mesmas ilusões, o sangue jovem pulsa com vontade. E a Felisberta, docemente, ia matando os velhos e as velhas da freguesia, para deixar ao doente, intactas, as fontes da alegria.
­      E hoje?
­queria ele saber de novo, sôfrego de uma palavra que fosse uma garantia da imunidade dos seus vinte anos.
­      O Pinto. A única, distinção que o sino fazia era entre homens e mulheres. E bastava à Felisberta ter debaixo da língua um nome de sessenta invernos, capaz de justificar as três ou as cinco badaladas, para aquietar aquele atento desassossego.
     O mal, porém, alastrou de tal modo que se tornmou impossível tocar a todos os defuntos. Além disso, o sinal fatídico acabara por ser um aviso a cada moribundo. E o prior, rogado e convencido, mandou calar o bronze.
­     De hoje em diante não há mais dobre a finados ­ ordenou ele. ­ Toda a gente que tem doentes em casa reclama., e tem razão. De mais a mais, pelo caminho que isto leva, nem a tocar de manhã à noite se dava vazão...
­      Pronto, acabou­se! ­ respondeu, obediente, o sacristão. ­ Vão empandeirados como animais, mas lá vão...
     O padre olhou em silêncio o rosto amarelo do Eusébio, a pensar na força dos sentimentos humanos. Até aquela alma rude sabia que, embora triste, sempre era uma nota de vida e de dignificação o sino a anunciar um trespasse humano. A vibração plangente descia da torre, propagava­se pelas veigas a cabo, e levava a cada caule, a cada folha e a cada fruto um estremecimento melancólico mas pulsátil, que significava ainda força, respiração e, sobretudo, protesto. E quem cavava, lavrava e suava nos lameiros, não sentia no silêncio conivente do sino o vazio do pó e do esquecimento.
­     Morreu um de Feitais... Pela coragem com que puxavam a corda do badalo, pela maneira como repicavam ou dobravam, sabia­se a que terra pertencia o cadáver que baixava à cova. Cada aldeia enterrava singularmente os seus mortos. Os de Leirosa, bonacheirões, pacíficos, pobres, tocavam pouco, devagar, sem vontade e sem brio. Mas já os de Fermentões, espadaúdos, carreiros e jogadores de pau, homens de bigodaça e de mau vinho, davam sinais de outro modo, viril e triunfalmente. E nestas variações o próprio defunto encontrava o seu húmus, ia desta para melhor amortalhado em verdade nativa.
     Infelizmente, o tempo feliz dessas expressões fraternas passara. Nas freguesias à volta era o que se sabia. E em Vilalva, depois da caminhada de expiação que o abade ordenara a ver se conjurava o mal, começou também a razia. Ou porque se juntou gente de toda a parte e pegaram a peste uns aos outros, ou porque a noite estava fria e ia tudo descalço e desagasalhado pela serra acima, ou porque o destino assim o quis, o certo é que no dia seguinte a povoação ardia em febre.
     O prior, apenas chegou a notícia do flagelo que dizimava as povoações vizinhas, não esteve com meias medidas:
­      Aqui a solução é implorar o auxílio do nosso padroeiro Mártir S. Sebastião, num acto colectivo de desagravo e penitência.
­      Se o remédio é esse... ­ responderam todos. E logo no outro dia à noite, pois não havia tempo a perder, pelos Pousados fora parecia uma ronda de fantasmas.
     Ia à frente a bandeira das Santíssimas Almas, pintada a alvaiade e a zarcão, onde se via quase ao natural o Arcanjo S. Miguel a pesar pecados: uma balança de doceira, o fiel a descair para o lado das chamas, e no prato de baixo um meio corpo aflito, a ver­se no inferno. Vinha depois, ajoelhado no seu andor, de cruz às costas, pálido e terrível, vestido de roxo e de severidade, o Senhor dos Passos. Só de olhá­lo, uma pessoa sentia­se perdida. Seguia­se o andor do orago, com o santo nu, atado a um poste e cravado de setas. A síntese perfeita da vulnerabilidade humana, que todos sentiam. Por fim, a fila interminável de poviléu. Velhos e novos, descalços, cobertos de lençóis, as mulheres de coroas de silva à cabeça, e os homens de cordas de carro à cinta e ao pescoço, e a sopesar ferros de arroteio, um, dois, três, quatro, seis até, conforme a força, a fé e o número de filhos.
     Era uma caminhada desumana para o outro mundo, branca, fúnebre, fantástica e resignada. Irmanados no mesmo sentimento de perdição, bons e maus gemiam em coro a cantilena que o padre orquestrava, roucos, abatidos e apavorados. Nas mãos inocentes ardiam círios e archotes, onde a esperança, batida pelo vento, tremeluzia inquieta. E em todos, um sincero arrependimento de culpas horríveis que não tinham.
     Mas ou do frio, ou do ajuntamento, ou castigo, o resultado de tanta humildade e sacrifício foi a aldeia acordar com os pulmões tomados.
­     Vão chamar o médico! Vão chamar o médico! ­ clamavam agora, uma vez que o santo protector visivelmente os abandonara.
     Infelizmente, nem o doutor lhes podia valer. Como frutos maduros abanados por rabanadas de vento, caíam aos magotes na enxerga. E no dia seguinte, ou pouco mais, marchavam para a sepultura, desiludidos do céu e da terra.
     A princípio o sino dava sinal e, ao som condoído da sua voz, o prior ia buscar o defunto a casa., e havia um lugar para cada fiel na terra sagrada do cemitério. À medida, porém, que a desgraça alargou, as garantias paroquianas foram perdendo a força. A torre calou­se, o padre já não fazia os levantamentos, e as valas eram no adro, e até numa vinha da residência, benzida à pressa. Sem o alarme dolorido do campanário, a morte perdera a solenidade, a individualidade e a santidade. Juntavam­se no largo pobres e ricos, amigos e inimigos, dez e mais, e o prior, de lenço no nariz, a defenderse da pestilência, conduzia o cortejo à igreja, onde os encomendava na mesma oração rápida e niveladora.
­      Não morreu mais ninguém?! ­ estranhava o Pedro, como um caracol que pusesse cautelosamente os cornos de fora, a sondar o silêncio.
­      Nunca mais ouvi o sino...
     ­Não, filho. Não. A aldeia parecia um pinhal devastado por um ciclone. Casas inteiras despovoadas, famílias exterminadas até à raiz, a flor da mocidade ceifada como trigo maduro.
     A pobre Felisberta tinha pago o seu tributo com três filhas, dois netos e o marido. Restava­lhe apenas aquele filho, que a cada instante parecia querer abandonar a luta e a cada instante a renovava. E todo o seu instinto de mulher estava ali, suspenso da respiração e dos olhos da última semente.
­      A Lucinda? Porque não vem? ­ era o gemido dele, mal acordava.
­      Ainda é cedo. Esteve à porta de manhã a saber de ti, queria ver­te à fina força, mas disse­lhe que tivesse paciência.
     já não restava nenhuma das raparigas casadoiras da aldeia. Como flores crestadas por geada traiçoeira, uma a uma, foram deixando tombar no caule a cabeça gentil. Uma visão de fim do mundo, se a Felisberta não soubesse no mais íntimo do cerne que nada estava perdido desde que a sua própria seiva persistisse.
­      Come, filho. Faz por engolir... A trovoada rondava ainda no ar, mas já distante e sem força. Apesar disso, o sino mantinha­se calado, com medo de acordar a morte.
­      Não me apetece...
­      Ora não te apetece! Vai teimando... Era difícil encontrar outra vez as palavras esquecidas, a razão aparente das cousas, o sentido simples de tudo. A vida parecia começar de novo, hesitante, sem saber o caminho. ­ Estás aqui, estás melhor, vais ver...
­      E de que vale? Antes tivesse ido com o pai, com as minhas irmãs e com os meninos... O peito da      Felisberta queria estalar de angústia. Mas já não havia tempo para mais desesperos.
     Cala­te, filho. O que lá vai, lá vai...
     O valor da desilusão sabia­o ela. Agora urgia descobrir o sabor da confiança. ­ Ainda havemos de ter muitas alegrias... Deixa lá! ­ Não diga isso, mãe ... Alegrias! ­ Digo e torno a dizer ... Mastiga, mastiga, filho. ­ E a Lucinda? ­ Não tenhas pressa. Deixa ver se isto varre mais... ­ Mas não tem morrido ninguém! o sino nunca mais tocou!... ­ Olha, toca agora... Repenicava de verdade o velho amigo e eram sinais de baptizado. A aldeia, numa paz de corpo sangrado e combalido, não se esquecera da vida. E ele quebrava a mudez prudente, e abria­se num contentamento apressado, cristalino, que inundava tudo de esperança.
­      De quem será?
­      Seja lá de quem for! O que se precisa cá é de gente
     Amparado nos braços velhos e amorosos da mãe, o rapaz chegara­se à janela e olhava as leiras em pouso, as casas fechadas e o largo deserto. O tamanho da desgraça entrava pelos olhos dentro.
­      A Lucinda morreu, pois morreu, minha mãe? O sino repicava sempre, alegre, festivo, prometedor.
     ­ Há mais raparigas no mundo... Não te aflijas.. As terras, lá fora, pediam fé e coragem. Pelo menos a fé e a coragem que a mãe tinha, sem homem, sem filhas, sem netos, cheia de lágrimas, de dívidas, e cansada até à última fibra do coração.

Novos Contos da Maontanha, Miguel Torga, págs. 141-148

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