Pular para o conteúdo principal

Agora, Fome, Não Tinha. Ziraldo ( Ziraldo para adultos - 1)

 Eu acho que o mundo era justo naquele tempo — e olha que foi ontem! Seo Zé da dona Rita morava no pé da serra — tinha uma situação lá — e criava uns porcos pro meu pai: capado à meia. Eu me lembro que ele chegava lá em casa e informava ao dono dos porcos — o capitalista — que tinha matado o porco. Nem perguntava se podia. Matava. E trazia a banda que nos cabia. Como era ele que criava o porco — numa relação de capital e trabalho — a banda melhor ficava com ele: o bucho, os miúdos, as tripas para linguiça, o sangue para murcia. O capitalista ficava com a banda lisa. Pode? Desde quando a melhor parte fica para quem trabalha? Em Caratinga, Minas, era assim, quando eu era menino e tem pouco mais de quarenta anos. Minha mãe gostava de falar dessas mudanças. Diante das tristes notícias dos jornais, ela dizia: “No meu tempo, fome era só vontade de comer”. A região onde morávamos era muito fértil mas pobre (só hoje percebo isso, pois, voltando lá, vejo a precariedade das velhas sedes das fazendas que, abandonadas, ainda estão de pé: tudo de pau a pique, janelas de tábua lisa, pobres mourões de braúna e madeira de má qualidade nos acabamentos). Não corria muito dinheiro na região, mas o clima era bom e a terra, em se plantando, dava tudo: “Aqui, num precisa nem semear, é só cuspir que nasce das sobras”.

Fome não tinha! O roceiro — que agora chamam de homem do campo — era pobre, muito pobre, mas digno. Digno porque não era aviltado por este tipo de pobreza urbana que conhecemos hoje, nas sórdidas periferias das grandes metrópoles brasileiras. Como dizia a mamãe, “uma pobreza que, pela pobreza, não humilhava”. É verdade que a saúde era pouca:maus dentes (muita rapadura), lombrigas, amarelão, bibiana e outras macacoas. Agora, fome, não tinha

Não tinha porque a terra sendo fértil e o homem tendo a terra, a que vai comer, de comer lhe dá.

Não me lembro — nem pesquisei — o tipo de relação que seo Zé da dona Rita tinha com o provável dono das terras onde eles moravam. Mas, me recordo muito bem que, quando a mamãe ia visitar dona Rita, levando a filharada com ela, levava também, sal e fazenda. Era tudo o que a família de seo Zé precisava: uma saquinha de sal grosso e alguns metros de chita, de petrope, de riscado ou carne-seca. Em troca, a gente almoçava lá e eu nunca vou esquecer os almoços da dona Rita, tudo tirado direto das panelas na trempe do fogão de lenha, servido em pratos esmaltados, numa casa sem mesa, sem cadeiras e sem facas. Só havia uns garfos de estanho e as colheres de pau — que o próprio seo Zeca fazia — pra tirar o arroz da panela de pedra. A grande lembrança fica por conta da buchada, só comida lá, pois o bucho nunca vinha na banda de porco do meu pai. E tinha frango com quiabo e tinha mingau-de-couve (que, apesar do nome, era feito com taioba rasgada) e tinha canjiquinha, agrião, folha de assa-peixe frita, passada no ovo e rolada na farinha, talo de mamão e refogado, ovas de galinha — frutos dourados como o sol, com gosto salgado de coisa proibida —, jilóbertalha, almeirão, couve picadinha — engraçado: alface e tomate não existia — inhame, cará, batata-docechuchu, abóbora-d’água, abóbora-d’anta, abóbora-de-porco, abobrinha, moranga, arroz pilado, torresmo e linguiça, mandioca frita, mandioca cozida, farinha-de-munho, rapadura, inhame com melado, doce de batata-doce ou de tronco de mamão ralado — tronco, mesmo! — laranjajabuticabajambofruta-pãomanga, mexerica, gabiroba, carambola e jenipapo — minha boca se enche d’água e meus dentes trincam com esta lembrança — goiaba, goiabada, cuscuz de fubá em panela de barro, biscoito de polvilho, broa, cubu e um bom aluá como refresco. Claro que não era este o menu de um almoço só, mas comi tudo isto lá, nas incontáveis vezes que visitei o pé da serra.

Sapatos, seo Zé não tinha. Nem dona Rita.

Fome, porém, não conheciam.

Estava pensando: e se todos tivessem sua terra pra criar suas galinha e plantar o que seo Zé e dona Rita plantavam em volta de sua casa, estariam por aqui, inchando a cidade grande e morrendo de aviltamento e indignidade?

Originalmente publicado na edição nº 5 de Globo Rural, em fevereiro de 1986.

Fonte: Revista Globo Rural

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.