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Entrevista - Mia Couto


Como o João Guimarães Rosa lhe influenciou?
Influenciou muito, mais do que qualquer outro autor do mundo. Porque ele me mostrou um caminho, me ajudou a resolver esse divórcio entre as vozes do meu mundo e a escrita. Foi o que ele fez: a sua linguagem poética colocou em diálogo as falas do sertanejo e a escrita urbana e erudita. Moçambique é um país que vive em absoluto na oralidade. Rosa me deu a licença poética que eu necessitava. Todos os contos são pequenas obras-primas. Talvez Sagarana tenha sido o menos surpreendente. Mas eu comecei pelas Primeiras estórias. E esse encontro me marcou definitivamente.

Em Grande Sertão, o personagem Diadorim representa as diversas ambiguidades e paradoxos. Ele é personificação do bem e do mal, do feminino e do masculino, da certeza e da dúvida. Concorda que seja uma característica que dialoga com a nossa “modernidade líquida”, em que a noção de verdade está sendo corrompida pelo mundo digital?
A grande literatura alimenta-se sempre dessas ambiguidades, dos mal entendidos e dos espaços cinzentos que ficam entre as grandes certezas. O livro é realmente muito atual. Mas tenho uma certa resistência na classificação dos tempos, como se fossem sucessões de mundos novos. A construção da mentira pelos poderes políticos não é uma novidade. Ela agora tem meios de difusão nunca antes vistos, justamente pelas redes sociais. De alguma forma, a história que aprendemos nas escolas já foi objeto de uma reconstrução, a partir dos interesses dominantes. Felizmente, hoje estamos mais atentos a essa manipulação.

Tem acompanhado a literatura contemporânea do Brasil? Como a enxerga?
Muito pouco, confesso. Esses livros não chegam a Moçambique, infelizmente. Do que conheço, quero ressaltar Julian Fuks. Há ali uma escrita densa e sólida, com um enorme domínio de um autor que ainda é bem jovem. Posso falar mais do Moçambique, onde há muita gente surgindo e alguns dos novos nomes são muito promissores. Estou muito feliz, pois houve tempo estagnado. A tendência dominante continua a ser a poesia. Mas também aqui há vozes absolutamente originais, mantendo uma inteligente aliança entre a originalidade e a crítica social.

Historicamente, consegue encontrar similaridades entre a literatura brasileira e a moçambicana (além da língua portuguesa)?
Não creio serem comparáveis. Mas existe uma descoberta de caminhos próprios que nos é comum. E aconteceu sobretudo na fase do modernismo brasileiro e que consiste na busca de um “idioma” que traduzisse a individualidade do Brasil face à língua do outro, que era obviamente Portugal. Essa mesma luta a tivemos em Moçambique. E o Brasil foi uma enorme fonte de inspiração.

O Brasil é a maior comunidade lusófona do mundo. Isso tem provocado alguma “hegemonia cultural” do país, sobretudo em relação à África?
Não creio. O que há a dizer - e talvez a lamentar - é um distanciamento do Brasil em relação à África. Nos últimos 15 anos, houve uma clara melhoria nesse alheamento. Hoje os brasileiros conhecem melhor as Áfricas no plural, pelo menos. Já não idealizam tanto o continente africano. Mas creio que, a nível das políticas externas, o Brasil de hoje tenha voltado a estar de costas viradas para África.

“Estar de costas” em que sentido?
O Brasil é uma nação enorme, uma nação continental e justamente por isso virou as costas até mesmo à América Latina. Ficou alheio à própria geografia da qual faz parte. Não posso fazer nenhum juízo, não sou brasileiro. A aproximação com a África terá que ser fruto de uma clara intenção governamental, pois, em relação aos brasileiros médios, eu acredito que essa vontade de proximidade esteja resolvida.

O contexto político do Brasil tem causado certo estranhamento no cenário internacional. Qual o seu olhar externo, como moçambicano?
É difícil analisar um contexto político do Brasil externamente, porque o que nos chega são notícias estranhas e desgarradas. Fico muito preocupado com a maior parte dessas notícias, confesso. Alguns desses pronunciamentos são difíceis de classificar. Chego a imaginar que esses pronunciamentos são feitos para criar uma espécie de distração, como aconteceu na recente política norte-americana, em que Donald Trump fazia declarações bombásticas (não tanto, confesso, como as que escuto vindas agora das autoridades brasileiras). Enquanto nos entretemos com essa nova forma de poder, consequências severas para as políticas sociais e ambientais são colocadas em marcha.

Emanuel Bento, Diário de Pernambuco 15.04.2019

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