Nos anos 40, o escritor italiano Giovanni Papini enfureceu nossos avós com a frase envenenada: "A América é feita das sobras da Europa." Hoje, temos razões para suspeitar que isso seja verdade, e mais: que a culpa seja nossa.
Simón Bolívar tinha previsto isso, e quis criar em nós a consciência de uma identidade própria numa linha genial da sua Carta da Jamaica:"Somos um pequeno gênero humano." Sonhava, e disse, que fôssemos a maior pátria, mais poderosa e a mais unida da terra. No final de seus dias, mortificado por uma dívida com os ingleses que até hoje não acabamos de pagar, e atormantado pelos franceses que tratavam de vender-lhe os últimos trastes de sua revolução, suplicou a eles, exasperado: "Deixem-nos fazer tranquilos a nossa própria Idade Média." Acabamos sendo um laboratório de ilusões fracassadas. Nossa maior virtude é a criatividade, e no entanto não fizemos outra coisa além de sobreviver de doutrinas requentadas e guerras alheias, herdeiros de um Cristóvão Colombo desventurado que nos encontrou por acaso quando andava procurando as Índias.
Até há poucos anos era mais fácil nos reconhecermos no Quartier Latin de Paris que em qualquer um de nossos países. Nos cafés de Saint-Germain-des-Prés trocávamos entre nós, e sem perguntar quem éramos, serenatas de Chapultepec por vendavais de Comodoro Rivadavia, caldos de congro de Pablo Neruda por entardeceres do Caribe, nostalgias de um mundo ídílico e remoto onde havíamos nascido. Hoje, estamos vendo, não parece estranho para ninguém que tenha sido preciso que atravessássemos o Atlântico para nos encontrarmos conosco em Paris.
A vocês, sonhadores com menos de quarenta anos, corresponde a tarefa histórica de arrumar essas desarrumações descomunais. Lembrem que as coisas deste mundo, dos transplantes de coração aos quartetos de Beethoven, estiveram na mente de seus criadores antes de estar na realidade. Não esperem nada do século XXI, pois é o século XXI que espera tudo de vocês. Um século que não veio pronto de fábrica, veio pronto pra ser forjado por vocês à nossa imagem e semelhança, e que só será tão pacífico e nosso como vocês forem capazes de imaginá-lo.
Discurso de abertura do Seminário "América Latina e Caribe diante do novo milênio", organizado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e Unesco, em 8 de março de 1999 Paris-FR
Em: Eu Não Vim Fazer Um Discurso,página 104
Ed.Record 2011
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