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Pelas Ruas de Tirano, crônica de José Paulo Cavalcanti

 Tirano fica bem ao norte de Itália. Na Lombardia, já fronteira com a Suiça. É famosa por muralhas
construídas, no final do século XV, por Ludovico Sforza - O Mouro; pelo Santuário della Madonna, dos inícios do século XVI; e por suas três grandes portas - Bormina, Milanese e Poschiavina.

     Marmirolli fazia parte daquela paisagem de cartão-postal.Órfão dos pais, desde cedo foi criado por uma velha tia. Com todos os cuidados e carinhos próprios dos filhos únicos. Até quando foi estudar em Milão. Já engenheiro, e com o advento da Segunda Guerra, voltou à terra. Não em busca de emprego, como seria natural; mas para ser partigiano - contra o Eixo de Hitler e Mussolini. Tendo plena consciência dos riscos que corria. E não foi surpresa para ninguém quando seu grupo acabou nas mãos de tropas alemães. Ao meio-dia de um dia quente, ainda mai quente que os dias quentes daquela época do ano. Quente como ferragosto. 

     Aqueles quase meninos foram então postos em fila com as costas na parede lateral da basílica. E os sinos tocaram, Como se fosse um sinal. Ou um lamento. Foi quando a metralhadora começou a funcionar.Metodicamente. Da esquerda para a direita, numa rajada. À medida que escutava o som das balas, pelo canto do olho Marmirolli via seus companheiros desabando. Anjos exterminados. Pedras de dominó que as crianças põesm de pé e derrubam num peteleco. Frutas maduras que caem na terra.

     Como queria viver, ficou esperando sua vez. E assim que o companheiro que estava à direita deu um gemido, se jogou nochão. Antes que a bala o attingisse. Caíram os dois, quase ao mesmo tempo. Como um saco de batatas largado sobre outro saco de batatas. O saco de baixo era Marmirolli. Com o sangue morno de um corpo tomando conta do outro. Em sequência, o chefe da tropa foi chutando aqueles corpos estendidos no chão. E cada gemido era um tiro de misericórdia.

     Marmirolli pensou que ;evaria um chute na cara. Talvez perdesse alguns dentes. Mas decidiu que não iria reagir. Doesse o quanto doesse, ficaria imóvel. O corpo já estava como que dormente. O chute foi na altura dos rins. Até ficou agradecido por isso. Pensou que seria pior. E não disse um ai. Era como se o militar chutasse uma carcaça. No fim da matança, foram-se todos embora. Pelo menos assim imaginou Marmirolli, ao ouvir o barulho dos caminhões em marcha. E ao sentir, na língua, o gosto do pó da estrada que entrava pela boca.

     O silêncio era enorme.Pavoroso. Marmirolli estranhou. cresceu em meio a uma profusão de sons, no lugar. Lembrou-se do Tirà li toli - um desfile barulhento que as crianças da pequena cidade faziam, todo 31 de janeiro, à espera da primavera que viria só em 21 de março. Aquele começo de tarde parecia um Tirà lo toli ao contrário. Algo fora do tempo e do lugar. Ouvia-se apenas o zumbir das moscas se banqueteando no mosto da grande poça de sangue que manchva o chão de barro.

     Com os olhos fechados, Marmirolli não tinha como saber se algum militar ficara de vigília. Imaginava que sim, porque nenhum morador chegou perto de seus filhos e amigos caídos. Para chorar seus morto. Ou salvar algum ferido. Nem mesmo por curiosidade. O medo é um deus sem nome. Nelhor não tentar fugir. Ficou imóvel. E o tempo foi passando.

     No meio da noite, um frio intenso começou a congelar seu corpo. Calor e frio, era esse o clima da região. Decidiu sair dali, a qualquer custo. Apesar de todos os riscos. Mas foi levantar e cair, que estava entrevado. Por sorte, os alemães haviam  mesmo ido embora. Ninguém por perto. Quase se arrastando, em meio à dores lancinantes, e depois de longo tempo, conseguiu chegar ao convento dos agostinianos.

     Ali permaneceu por alguns dias, sob a proteção dos monges. Logo ele, que não acreditava em Deus. Até quando, junto com os religiosos, dirigiu-se à estação da estrada de ferro. Vestindo hábito de freira, era o disfarce possível. Não havia guardas por lá, tinha sorte afinal. Tomou o  Bernina Express, que diariamente parte da cidade na direção de St. Moritz. E chegou à Suiça. Um país neutro, na guerra. Estava salvo.

Pouco depois, ao se olhar no espelho, teve um susto. É que seus cabelos começaram a nascer brancos. e logo desapareceu completamente o castanho escuro de antes. Menos mal. Estava vivo, era o que importava. Com a vitória dos aliados, voltou a Milão. E começou a trabalhar em uma empresa multinacional. Quando soube que precisavam de diretor para o Brasil, se apresentou. Depois da morte de sua tia, nada mais o prendia naquela terra. foi escolhido. E veio dar em um mundo par ele novo.

     Casou com uma oriunda. Ganhou filhos. Depois de tanto tempo,, afinal, vivia uma vida simples e sem sustos. Salvo um pesadelo que o atormentava quase todas as noites, com aquela cena do fuzilamento se repetindo. E assim foi até quando a mulher, pouco antes do  parto do último filho, começou a sofrer com uma doença de nome complicado - esclerose lateral amiotrófica. E perdeu quase todos os movimentos. Por sorte, não os dos músculos da face. Conversavam quando voltava do trabalho. Conversavam, propriamente , não. Marmirolli fazia longos relatos de como fora seu dia. Em uma espécie de diário falado. Ou fazia perguntas e ela respondia. Movimento da face era sim. Piscar os olhos, não. Para sua mulher, presa na cama, era só o que restava. Tanto que a filha mais velha, certa vez, lhe disse algo que mais parecia uma sentença de morte: "se voc6e for embora, ela morre."

     Marmirolli passou a viver como se outra guerra lhe tivesse deixado, agora, outras marcas. Tardias e profundas. Num fim de tarde, em sua sala no trabalho, Quitéria tomou coragem. Seu papel na fábrica, era o de servir café aos visitantes, esvaziar lixeiras e fazer outros serviços menores. Percebia no patrão uma tristeza enorme. Perguntou se algo estava acontecendo. Se poderia ajudar. Viúva recente, sabia o que era padecer. E não gostava de ver ninguém sentindo por dentro aquele vazio que conhecia tão bem.

     Ele prestou atenção na funcionária pela primeira vez. Estavam próximos todos os dias. Mas só agora via que era uma bela mulher, perto dos 50 anos. Com o corpo magro e ainda bem feito. Um rosto de traços lombardos, como tantos em Tirano. Considerou isso como um sinal. Tornaram-se amantes. Nas sextas-feiras, iam para o motel. Almoçavam, faziam amor e conversavam.. Os encontros viraram rotina. Com sexo cada vez menos, que logo Quitéria engordou. Virou matrona. E ficavam apenas conversando, as mãos dadas, naquel cantinho que passou a ser só deles. 

     Então procurou seu advogado e perguntou como poderia resolver aquela situação estranha. O doutor disse não haver muito a fazer. Casar com Quitéria não podia. Teria que se separar, antes, da mulher com quem estava casado. Mas tratava-se d uma inválida. Uma decisão difícil. A sugestão que deu foi deixar o tempo passar. E assim foi até quando morreu a mulher de Marmirolli.

     Depois do enterro, no apartamento, reuniu seus filhos. Lembrou-se do que lhe dissera o advogado. Por não haver mais qualquer impedimento a que se casasse, falou da outra mulher. E confessou que já não podia mais viver sozinho. Todos entenderam. Depois do trigésimo dia, falou no assunto com Quitéria. Ela ponderou que os filhos dela não entederiam. E que Marmirolli precisava cuidar dos seus, ainda jovens. Após o que sugeriu que nada se alterasse, na rotina dos dois.

     Todas as sextas, por muitos anos mais, continuaram indo ao motel de sempre. Marmirolli, numa dessas vezes, recordou seu passado. Os pais se foram tão cedo. A tia que o criara. Amigos que perdera na Itália. O rio Adda, em que se banhava quando criança. O território da infância ganahando tintas cada vez mais fortes. Quitéria, por sua vez, nunca tinha viajado. Não sabia como era o mundo. E passou a pedir que falasse mais e mais dessas lembranças. Era como se, ao escutar, viajasse por lugares para ela impossíveis. Logo Marmirolli, nesses encontros, passou a quase que só reviver memórias antigas.  Até que afinal partiu, ao encontro dos fantasmas que andaram sempre a seu lado.

     Na primeira sexta-feira depois de perder seu amor italiano, Quitéria foi para uma última vez ao motel. A quem visse a cena, de longe, poderia parecer estranho. Que aquela mulher sozinha, e já idosa, estivesse ali.Mas isso não tiha importância, para ela. Almoçou, repetindo cena que vivera por tantos anos. Sentou numa cadeira de balanço que havia no quarto. Com a ponta dos pés fazendo pressão no chão, ficou naquele pra frente e pra trás, sempressa, deolhos fechados. E sonhou que ela e Marmirolli dançavam, felizes, pelas ruas de Tirano.

Oriunda: descendente de italiano que vivia fora da Itália.

Em: So Mente a Verdade, José Paulo Cavalcanti, Ed.Record, 2016, ,págs.13-19

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