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O Jeito Que Meu Pai Fala, crônica de Marcílio Godoi

 


Salve 4 de outubro, dia do seu Marciano!

Lá em casa, quando fazíamos aniversário, meu pai sempre chegava, a um determinada hora do dia, geralmente trazido à força por minha mãe, e perguntava:
— Aêooou, Marcs..., (parênteses: meu pai Marciano chamava todos os filhos de Marcs..., que era um genérico de si mesmo que ele aplicava a toda a prole, Marciano, Márcio, Marcelo, Marcus, Marcial, Marcílio...) ouvi dizer que é o seu aniversário hoje?
— É, sim, pai.
— Então meus parachoques! — ele brincava, de longe, sempre com medo de que um abraço e um beijo — perigo! — formalizassem um parabéns muito afetuoso.
Seu Marciano era amoroso, mas não podia deixar isso expresso de forma nenhuma, sob pena de perder o moral. Os filhos, os que sabiam ler a gente no gesto, sabiam disso. E era fácil saber, afinal o ET sempre esteve lá, junto de nós. Não faltava uma vez.
Quando atendia o telefone, dizia, meio gritado, para a pessoa do outro lado ouvir quase sem a necessidade do aparelho — como toda pessoa que assistiu essa invenção surgir e crescer em nosso cotidiano, o que é algo muito diferente de já ter nascido em meio a celulares. Ele falava: — ALÃO! — A gente já sabia que era ele na linha. E em seguida ele vinha: — Às suas ordens! — o que era naturalmente uma resposta à pergunta: — É o Marciano quem está falando?
Logo depois ele saía à procura da pessoa solicitada no telefonema. E dizia: — Aeôu, Marcs, Telefunken! — Que era o nome de uma marca alemã de aparelhos televisores muito famosa na época.
A gente era menino, via ele colocar a funda, uma cinta que pressionava a virilha para evitar que uma hérnia supurasse. Lembro-me de o incluir em minhas poderosas orações infantis: "Jesus não deixe que uma terceira bola do meu pai desça pro saco!" Ele instalava o estranho cinturão e ia trabalhar no balcão duro de seu comércio de eletricidade, no centro de Belo Horizonte. — Com Deus vamo!, com Deus vão, café de Deus! E sumia pelo canteiro da primeira curva da avenida do Contorno.
Fora isso, pouco se ouvia meu pai. Era avesso a discursos, polêmicas, era o mineiro típico da piada, aquele que dá um boi pra não entrar numa briga e uma boiada pra sair dela. Um dia, juntou todo mundo em volta da mesa e disse, passando a casa pro nome dos filhos: "Ocêis fica com esses trêm docêis pra lá!". Tinha, como gostava de dizer, chegado com a "cerca no córrego", ou seja, feito com que a vida e o seu sustento empatassem no final.
Com o tempo, por todas essas habilidades de sua prosa diminuta, virou um escultor de silêncios, com peças muito bem acabadas de vazio, de palavra alguma, de não-palavra.
A gente lhe perguntava — Uai, pai, não vai jantar hoje? — E ele, tirando o corpo fora: — Não. Arresolvi comer mais pôco! — E ia dormir, mal escurecia, com as galinhas, como se dizia. Não "pegava" nem o Jornal mais. Aquilo era sabedoria, para alguns. Para outros, um sinal de que, na viuvez, perdera todo e qualquer gostinho que ainda tivesse pela vida. Na noite, ao fim da vida, acordava muitas vezes, despertado pela bexiga ou assustado com o infernal pesadelo de estar-se ainda sobrevivente" — Pra quê isso tudo? — Perguntava-se, de um lugar improvável entre a resignação e o desespero.
No dia seguinte, quando queríamos saber dele se tinha dormido bem, ele dizia, quebrando uma bolacha ao meio — Escapei. Tenho muita saudade dele. Na medida em que passam os meus dias, mais vejo: só ele me explica.

Originalmente publicada na página do autor no Facebook, dia 4/10/25

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