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Canto Eucarístico, poema de Adélia Prado


Na fila da comunhão percebo à minha frente uma velha,
a mulher que há muitos anos crucificou minha vida,
por causa de quem meu marido se ajoelhou em soluços diante de mim:
"juro pelo magnificat que ela me tentou até eu cair,
peço perdão, por alma de meu pai morto,
pelo Santíssimo Sacramento, foi só aquela vez, aquela vez só."
Coisas atrozes aconteceram.
Até tia Cianinha, que morava longe,
deu de aparecer na volta do dia.
Conversávamos a portas fechadas,
ela com um ar no rosto que eu não vira,
zangando pouco com o menino, deixando ele reinar.
Houve punhos fechados,obeservações científicas
sobre a rapidez com que a brilhantina desaparecia do vidro,
sobre como pode um homem, num só dia,
trocar duas camisas limpas.
Irritação, impertinência,
uma juventude amaldiçoada tomando conta de tudo,
uma alegria - chamei assim à falta de outro nome -
invadindo nossa casa com a sofreguidão das coisas do diabo.
rezei de modo terrível.
O perdão tinha espasmos de cobra malferida
e não queria perdoar,
era proparoxítono, um perdão grifado,
que se avisa perdão.
"olha, filha, aquela mulher que vai ali
não é digna do nosso cumprimento."
"Por que, mãe, não é dí-gui-na?"
"Quando você crescer, entenderá."
Senhor eu não sou digno
que neste peito entreis,
mas vós, ó Deus benigno
as faltas suprireis.
Na fila da comunhão cantamos, ambas.
A mulher velha e eu.


Em: Coração Disparado, Ed. Salamandra, 1984, págs.71-72

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