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Ela Tem Alma de Pomba, crônica de Rubem Braga

     Que a televisão prejudica o movimento da pracinha Jerônimo Monteiro, em todos os Cachoeiros de Itapemirim, não há dúvida. Sete horas da noite era hora de uma pessoa acabar de jantar, dar uma volta pela praça para depois pegar uma sessão das 8 no cinema. Agora todo mundo fica em casa venda uma novela, depois outra novela.   

     O futebol também pode ser prejudicado. Quem vai ver um jogo do Estrela do Norte F. C. , se pode ficar tomando cervejinha é assistindo a um bom Fla-Flu, ou a um Inter x Cruzeiro, ou qualquer coisa assim?

     Que a televisão prejudica a leitura de livros, também não há dúvida. Eu mesmo confesso que lia mais quando não tinha televisão. Radio, a gente pode ouvir baixinho, enquanto está lendo um livro. Televisão e incompatível com livro – e com tudo mais nesta vida, inclusive a boa conversa, até o making love.

     Também acho que a televisão paralisa a criança numa cadeira mais do que o desejável. O menina fica ali parado, vendo e ouvindo, em vez de sair por aí, chutar uma bola, brincar de bandido, inventar uma besteira qualquer para fazer.

     Só não acredito que televisão seja máquina de fazer doido. Até acho que é o contrário, ou quase o contrário: é máquina de amansar doido, distrair doido, acalmar, fazer doido dormir.
Quando você cita um inconveniente da televisão, uma boa observação que se pode fazer é que não existe nenhum aparelho de TV, a cores ou em preto e branco, sem um botão para desligar. Mas quando um pai de família o utiliza, isso pode produzir o ódio e rancor no peito das crianças e até de outros adultos.

     Quando o apartamento é pequeno, a família é grande, e a TV é só uma – então sua tendência é para ser um fator de rixas intestinas.

     – Agora você se agarra nessa porcaria de futebol…

     – Mas, francamente, você não tem vergonha de acompanhar essa besteira de novela?

     – Não sou eu não, são as crianças! – Crianças, para a cama!

     Mas muito lhe será perdoado, à TV, pela sua ajuda aos doentes, aos velhos, aos solitários. Na grande cidade – num apartamentinho de quarto e sala, num casebre de subúrbio, numa orgulhosa mansão – a criatura solitária tem nela a grande distração, a grande consolo, a grande companhia. Ela instala dentro de sua toca humilde o tumulto e o frêmito de mil vidas, a emoção, suspende, a fascinação dos dramas do mundo.

     A corujinha da madrugada não é apenas a companheira de gente importante, e a grande amiga da pessoa desimportante e só, da mulher velha, do homem doente… É a amiga dos entrevados, dos abandonados, dos que a vida esqueceu para um canto… ou dos que estão parados, paralisados, no estupor de alguma desgraça… ou que no meio da noite sofrem o assalto de dúvidas e melancolias… mãe que espera filho, mulher que espera marido… homem arrasado que espera que a noite passe, que a noite passe, que a noite passe…

Imagens: Praça Jerônimo Monteiro nos anos 50 e na atualidade.


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