Era 2009, ano do nascimento de minha neta a Lara. Foi muito bem recebido pelas crianças. Thiago com 10 anos, Camily com 4 anos de idade.
Mas foi o Thiago quem o escolheu, e ele escolheu o Thiago.
Agora faltava escolher o nome. Reunião entre as crianças. Chegaram ao nome: ‘Snoopy”. Não sei se fazendo referência ao desenho animado que eu muito assisti em minha infância, mas que eles só conheciam em figuras e quadrinhos na internet.
Sabendo eu que o Snoopy do desenho animado era inteligente, dócil, livre e aventureiro, me perguntei olhando para dentro da caixa de papelão, se for cachorro mesmo, vou ver se tem as qualidades e características do Snoopy do desenho animado.
Mas Snoopy rosnava e queria morder qualquer um que lhe incomodasse. Já nos primeiros meses, percebemos que ele era sempre mal-humorado com todos, menos com o Thiago.
Ele não atendia pelo nome Snoopy, então o apelidaram de Lup. Meses, anos foram se passando e a fúria só aumentando! Até então, o território dele era a casa e o quintal. Dormia com o Thiago. Quando ia ao petshop, voltava de gravata - parecendo um doutor -, porém furioso e com os dentes sempre à mostra.
Lup não gostava de criança, nem de visitas. Em casa, avançava, mordia as canelas. Às vezes, tínhamos que deixá-lo na varanda, trancado até as visitas irem embora. Algumas pessoas da família pararam de nos visitar devido à brabeza exacerbada dele. O que não tinha de tamanho, não faltava de brabeza.
Já adulto, Lup começou a ter novas experiências, novas aventuras: fugia de casa para a rua!
Bobeou com o portão, ele ia para a rua sem hora de voltar. Quando voltava, não importava a hora, arranhava o portão e latia até alguém abri-lo. Virou o terror dos carteiros,coletores de lixo, medidores de água e energia: todos o conheciam e se admiravam com a brabeza deste ser tão pequeno e valente!
Um dia pela manhã, Lup comeu um pedaço de bacon com chumbinho (de matar rato), ficou muito mal, gemendo, vomitando e rolando de dor pelo quintal. As crianças chorando e eu esperando ele acabar de morrer. Lup no chão, nos últimos suspiros, e eis que chega uma vizinha com um líquido preto. Abrimos a boca dele, tivemos que fazer manobras para o líquido descer pela sua garganta, ficamos olhando aquele animalzinho sem vida aparente. Quando ia recolher o corpo do pobre animal, eis que Lup se levanta cambaleante, fica vomitando pelo quintal, mostrando melhoras...É, Lup não era um rato e venceu o chumbinho!
As aventuras dele pelas ruas do bairro continuaram, conhecia toda a vizinhança, os comércios, mas ninguém colocava as mãos nele.
Uma bela tarde, chega uma criança nos chamando: o garoto, ofegante, nos deu a notícia. Lup foi atropelado! Corremos para ver a situação. Ele, mais uma vez, todo torto e machucado, mas vivo. Ficou de molho por uns dias, mas logo voltou com as suas aventuras pelo bairro.
Se ele visse alguém no bairro levando carvão de churrasco, ele acompanhava até a casa da pessoa e quando voltava para casa, sempre trazia ossos e coloca dentro de sua casinha. Aliás, que era intocável, ninguém se aproximava da casinha dele.
Anos já haviam se passado e Thiago já trabalhava e estudava, não conseguia dar mais a atenção de quando era garoto, e ele era o único que domava a fera. Se ele ficasse dois dias sem sair para a rua, a vizinhança vinha perguntar por ele. Começou a receber apelidos: os coletores de lixo o chamavam de Leão. O carteiro, de Gigante. O entregador de gás de cozinha, de Tazo (referente ao demônio da tasmânia). Zangado, Valente, ao longo dos anos foram muitos apelidos.
O tempo passou. Em 2021, Lup estava com 12 anos, já era um senhor na idade de cachorro. Todo dia esperava o Thiago no portão às 23:00h, horário em que o meu filho chegava do trabalho. Era uma festa de tanta alegria! O único momento em que ele brincava e se divertia era com o Thiago.
Mas o destino nos causou uma peça, Thiago, aos 21 anos, enfartou e partiu sem nos dizer “Tchau !”” ou “Até breve!”. A casa ficou de luto e o Lup também.
Os meses foram passando, Lup já não se aventurava mais pelo bairro, não rosnava, não saía de casa. A ira só lhe tomava quando ia ao petshop, mas não conseguiam dar banho nele. Um dia, o rapaz do petshop falou: “Ninguém consegue dar banho neste demônio!”.
Às vezes, eu o observava indo ao quarto, que um dia foi dele e do Thiago, mas ele não ficava mais lá. Sentíamos a tristeza e desânimo em sua cara.
Por meses, religiosamente, esperava seu amigo às 23:00h no portão, mas ele nunca mais entrou por ele...
Foi diagnosticado com depressão, ficou dois anos sem tomar banho, definhou. Caíram os dentes, que já não mostrava mais. Com veracidade, a velhice chegou de uma vez, numa velocidade assustadora.
Ah, Lup! A saudade dói, machuca! Ficou um vazio, um buraco em nossas vidas.
2023. Acordei pela manhã, Lup estava com a cabeça entre as duas patas olhando o portão. Chamei. Ele não interagiu quando coloquei as mãos nele, estava gélido, já não estava mais ali. A última visão dele foi o portão, que nunca mais se abriu para o seu “parça”, assim que Thiago o chamava.
Fui tomado de grande emoção e saudade, e falei para o corpo do pobre animal, que o portão se abriu para ele, que podia correr para os braços de seu parça Thiago! A eternidade ou a distância não nos separam de um verdadeiro amor!
Eu, emocionado, tive uma visão: o Thiago e o Lup brincando no bosque da eternidade, alegres e sorridentes. Thiago e Lup eternizados em nossos corações!
O som mais lindo era o portão se abrindo para o filho entrar e os arranhões que Lup dava nele.
Hoje, 16 anos depois, me perguntei sobre as qualidades do Snoop personagem. Encontrei no Lup muito mais inteligência, doçura, espírito aventureiro e um amor fidelíssimo ... e livre agora.
Por vezes, até hoje, os moradores do bairro se lembram e perguntam por ele.
O portão nunca se fecha onde existe amor.......
Sobre o autor:
Noel Silva Pereira é Graduado em Geografia pela Universidade Camilo Castelo Branco (Unicastelo); Pedagogo formado pela Universidade Campos Elíseos; Estudante de Direito na Fausp.Professor de Geografia da rede pública do Estado de São Paulo; Leciona na Escola Estadual Professora Ignês Corrêa Allen, em Ferraz de Vasconcelos – SP.
Parabéns, Professor Noel Silva Pereira! Que belo conto!
ResponderExcluirComo sempre , um belo e enriquecedor conto, inclusive no sentido reflexivo de nossa tão curta vida terrena...Parabéns Professor Noel, Deus te abençoe e ilumine cada dia mais!
ResponderExcluirObrigado Dr Ricardo J Ribeiro a reflexão é uma janela sempre aberta...
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