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100% Classe Média, crônica de Antonio Prata

     "Nós somos ricos?" perguntei à minha mãe, aos cinco anos. Eu achava que sim. Afinal, para mim, os pobres eram aquelas pessoas  que eu via com prematura angústia, através do vidro de nosso Passat verde-musgo, na pequena favela Juscelino Kubitschek, perto de casa. Minha mãe disse que não éramos ricos nem pobres, éramos de classe média.

     Achei o termo meio nebuloso e confesso que só fui entendê-lo realmente, em suas profundas implicações socioexonômicas-culturais, na última terça, durante o banho, quando o vizinho de cima deu a descarga e a água do meu chuveiro pelou. Eu gritei um palavrão, abri mais a torneira e, quando minhas costas voltavam a uma temperatura suprtável, pensei:ah, então é isso.

     Ser de classe média significa ter uma proximidade compulsória com os outros e, consequentmente, estar em constante negociação com o mundo. Afiinal, você não está entre a minoria que dita as regras, nem junto à massa que apenas as segue. Eu não imagino, por exemplo, o Antônio Ermírio numa reunião de condomínio, secando o rosto com um lenço e dizendo: "Nem vem, Dona Arminda, a vaga do 701 já tava prometida pra mim faz tempo, a senhora devia era cuidar do Artur que faz um escarcéu com o patinete no playground bem depois das dez".

     Depois que  inhas ostas pelaram, comecei a me ver na classe média a toda hora. Restaurante por quilo, por exemplo. Tem coisa mais classe média? Tudo bem, posso dizerque sou de uma classe média intelectualizada - o que significa que não ponho feijoada e sushi no mesmo prato - mas seria ridículo negar minhas origens, na fila, diante de uma cestinha contendo "palha italiana" e ouvindo o mantra diário do capitalismo nosso de cada dia: "Crédito ou débito?"

     Rico não come em quilo nem morto. Ou você consegue imaginar, digamos, Paulo Skaf botando aquele tempero pronto para salada nuns ovinhos de codorna, enquanto aguarda um bigodudo liberar o réchaud  de croquetes?

     Se um dia tiver de responder a um filho a pergunta que fiz à minha mãe, darei a explicação que ouvi de um comediante americano na televisão: "Se no trabalho seu nome está escrito na rouppa, você é pobre. Se o nome estiver escrito na mesa, você é classe média, e se estiver escrito no prédio, você é rico". Mas isso é coisa para me preocuparr daqui a muitos anos.  Urgente mesmo é, na próxima reunião de condomínio, colocar na pauta a questão da descarga do 204. 100% classe média


Em: Meio Intelectual, Meio Esquerda, Antonio Prata Ed.34, 2010, págs.109-110

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