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Os Dois Amigos, crônica de Lêdo Ivo


     Quando os dois amigos se encontravam, um deles sempre tinha pressa. No instante mal cabia um aperto de mão. O gesto afetuoso perdia-se no ar, inacabado.
     - Precisamos nos encontrar! - exclamava o amigo vitorioso e apressado, e talvez uma fagulha de satisfação cintilasse no olhar do outro que sempre respondia, catando as migalhas da antiga estima:
     - Telefone. Tenho o nome no catálogo.
     O amigo sempre ocupado, não dispunha de tempo para deter-se na calçada ou no meio da rua, tirar o caderninho de notas e escrever-lje o nome e número do telefone. Mas não havia necessidade desse ritual miudo: seu nome estava no catálogo telef6onico!
     Contava, à noite, à sua mulher, que encontrara o amigo de infância. "Estive hoje com o Felisberto Barrosso."dizia o nome todo, embora ambos tivessem sentado juntos nos bancos do grupo escolar. chegara mesmo a salvá-lo uma vez de morrer afogado. Felisberto ( ou Felisberto Barroso) não sabia nadar, jamais aprendera. E se não fosse a sua vigilância de amigo de infância, sempre atento e dotado de certa astuciosa subordinação, não teria agora seu nome nos jornais. Lembrava-se dos braços aflitos espadanando na água verde-garrafa do rio nos momentos em que, numa revista ou numnoticiário radiofônico, ouvia o nome do amigo, nomeado para um alto cargo ou viajando para a Europa em missão oficial. Às vezes encontrava-se inesperadamente com ele:
     - Pensei que você estivesse na Europa. Li que foi nomeado para a delegação de Genebra.
     - Já fui e já voltei. Agora a gente faz Rio-Paris em doze horas. É a era do jato - e sorria feliz, mas talvez indiferente. Ou então, em sua pressa, só podia dar-lhe aquela fatia de glória.
    Fazia-lhe perguntas vagas, se ainda trabalhava no laboratório farmacêutico. E o amigo tornava a explicar que, há três anos, mudara de emprego, agora era vendedor de aparelhos termodomésticos.
     - Precisamos nos encontrar! - exclamava Felisberto Barroso. E o amigo, os olhos em sua gravata de seda italiana, na imaculaa camisa de cambraia inglesa, no tropical que zombava da inclemência do verão insólito, não podia deixar que uma velha lembrança lhe retornasse à memória, e ele voltasse a ser Felisberto Barroso no interior do laboratório farmacêutico vinte anos atrás. Visitava-o para obter amostras gratuitas, queixava-se de dor do lado do fígado, manifestava a sua fé nas vitaminas. Haviam chegado ao Rio quase ao mesmo tempo e certas noites passeavam juntos pela Avenida, paravam na Galeria Cruzeiro, iam ao Vermelhinho tomar um chope. Era no tempo da ditadura, mas Felisberto Barroso se interessava pela política, tinha ambições. A ditadura caiu, e os seus encontros foram raeando.
     Um dia, viu o amigo à porta do Serrador, conversando com o governador da Paraíba. Anos depois, felisberto Barroso foi nomeado diretor de uma autarquia. Numa noite chuvosa, descobriu-o dentro de um carro oficial.
     Os encontros eram cada vez mais raros.
     - Precisamos nos encontrar!
     - Meu nome esrá no catálogo.
     Não lhe perguntava onde morava, talvez ignorasse mesmo se ele se casara e tinha um filha de doze anos e um garoto de sete. Mandara-lhe o convite, mas nesse tempo o amigo estava em campanha eleitoral. Candidatara-se então a deputado federal, e perdera.
     Quando se desentendera no laboratória, e o patrão o chamara para um acordo, a mulher sugeriu-lhe que deveria procurar Felisberto Barroso e pedir-lhe um emprego público. "Largue esse negócio e arranje um lugar de tesoureiro no serviço público. Veja o Leocádio, já comprou até automóvel e apartamento em Teresópolis." Leocádio era um vizinho cuja prosperidade assombrava os inquilinos do prédio; e para não assombrá-los ainda mais, resolvera mudar-se para Botafogo. "Minha condição social exige que eu more num bairro aristocrático," confidenciava ao porteiro. A muher tanto insistiu que ele procurou Felisberto Barroso que, suplente de senador, assumira o mandato por alguns meses. Subiu as escadaria do Monroe, entrou numa fila para falr a um guarda, deu o nome um funcionário e ficou esperando.
     O sol fulgurava numa janela. Na grande sala de espera, tudo se resumia a conciliábulos e cochichos de pretendentes e queixosos. Afinal, chamaram-lhe o nome, apresentou-se a um funcionário que o conduziu através de alguns corredore, talvez o tivesse levado a subir uma escada ou a tomar um estreito elevador, não se lembrava mais. Felisberto Barroso recebeu-o sentado numa larga poltrona de couro na sala escurecida. "Estou exausto!" - foram suas primeiras palavras, ao estender-lhe a mão, sem se erguer.
     Contou-lhe a causa da exaustão: defendera, num discurso, a política econômico-financeira do governo. Citou os apartes, aludiu a nomes desconhecidos. Ao terminar, estendeu os pés na poltrona - usava sapatos pretos, de bico fino. Então ele relatou a historia da briga com o dono do laboratóriao e expôs sua pretensão: um lugar de tesoureiro no Ministério da Fazenda, Felisberto Barroso atalhou-o: "No Ministério da Fazenda é um pouco difícil. Mas numa autarquia é mais fácil, não dá tanto na vista. E ganha-se a mesma coisa." Prometeu ajudá-lo. E ele, embora tivesse o nome no catálogo, preferiu dar-lhe por escrito o seu endereço. "Qualquer dia lhe telefono." O líder da maioria mandou chamá-lo, Felisberto Barroso levantou-se, pôs a mão no seu ombro, garantiu-lhe: "Você vai ser tesoureiro, meu amigo." Como Felisberto Barroso não telefonasse nem desse notícias, a mulher se afligia: "E o teu amigo que não telefona?"Para saber se Felisberto Barroso estava mesmo no Rio, ele ligava o rádio na Hora do Brasil. O amigo estava no Rio, defendendo a política aconômico-financeira do governo. Cansou-se de esperar, aceitou um lugar numa loja de aparelhos eletrodomésticos. Às escondidad da mulher escreveu uma carta a Felisberto Barroso, entregou-a na portaria do Senado. Mas o amigo continuou mudo. Meses depois, cruzou com Felisberto Barroso numa esquina. Julgou que ele tivesse fingido não vê-lo, mas logo enxotou esse pensamento vil. Decerto ia distraído ou pensando na inflação.Numa tarde, em que saíra para engraxar os sapatos (fora designado subgerente da firma), Felisberto Barroso veio-lhe ao encontro, saindo de um grupo grande. Abraçou-o, disse-lhe que estava mais gordo.
     Cuidado para não engordar muito. Na nossa idade, é enfarte na certa. Controle o colesterol.
     E se foi, sorridente, com a fina cambraia de sua camisa e uma gravata azul que era um espetáculo.
     - E o seu amigo senador? - perguntou-lhe a mulher. Ele contou que o senador Felisberto Barroso rompera com o governo, agora não tinha mais força nem para nomear um contínuo. Mentiu - "Dou graças a Deus por não ter saído esse emprego. O serviço público é um cemitéri."Provou-lhe que nada é melhor que a iniciativa privada: já era subgerente da firma, ganahava bem, no Natal iria receber uma boa gratificação ( podiam até passar as f;eria em Poços de Caldas!). Para justificar os seus argumentos, invocou a festa do casamento da filha daquele diretor da Associação Comercial, as novas amizades, as comissões recebidas, a garrafa de uisque que um dono de banco lhe mandara. Essa conversa era de noite, na cama, antes de dormir, e a mulher usava uma camisola nova, cor de vinho. "Vou terminar diretor da Associacão Comercial, pode estar certa. "
     No dia em que comprou o carro ( a firma o ajudara obtendo descontos e pagamento facilitado), passou-lhe pela memória a figura do amigo dentro do chapa branca, naquela noite de toró bárbaro. Agora ele estava motorizado, era como se a dist6ancia que o separava de Felisberto Barroso tivesse diminuído.
     O último encontro foi na porta do cemitério de Catumbi. O gerente da firma, seco e magro, Flamengo doente, fora-se num enfarte do miocárdio, e ele o velara a noite inteira, meio triste e meio alegre. O velho era ótimo, contava anedotas pornográficas. Mas já se cochichava no velório que ele seria o gerente. E foi ruminando essa perspectiva, que o compensava de tantos aborrecimentos e humilhações, que seus olhos se detiveram em Felisberto Barroso. "Olá!"Perguntou-lhe se sabia em que capela estava o corpo de um deputado. A mulher aproximou-se e ele a apresentou. "Ministro Felisberto barroso, minha mulher." Sentia-se radiante, Felisberto barroso era ministro e a ocasião ótima para exibir à mulher aquele raríssimo amigo de infância. E, para aumentar a sua felicidade, o presidente da empresa, que viera de São Paulo para assistir ao enterro, também se acercou e lhe permitiu exibir seu prestígio. ficaram converando alguns momentos. À sua mulher, Felisberto pediu notícia das crianças, advertiu-a que ela seria uma das avós mais jovens do Brasil já que a filha, normalista, arranjara o primeiro namorado. O presidente da empresa respondeu a algumas perguntas sobre a produção de aparelhos termoelétricos, e Felisberto Barroso falou num plano de governo, para conquistar novos mercados na América Latina. "Estamos exportando até para os Estados Unidos", garantiu.
     O secretário do ministro veio dizer-lhe que localizara a capela onde jazia o corpo do deputado. Ao se despedir, abraçou a amigo:
     - Precisamos nos encontrar mais. Preisamos almoçar juntos qualquer dia destes. Telefona lá para o Ministério.
     Quando Felisberto sumiu entre coroas fúnebres, a mulher virou-se para ele: "Um encanto, esse teu amigo."E ele teve que explicar ao presidente da companhia que Felisberto Barroso, seu amigo íntimo, desde a infância, tudo fizera para que ele largasse a iniciativa privada e fosse trabalhar no serviço público.
     - Ofereceu-me até um lugar de tesoureiro no Ministério da Fazenda. Não aceitei. Meu lugar é na livre-empresa.
     Foi nomeado gerente. De vez em quando viajava para São Paulo, ficava hospedado no Jaraguá, por conta da companhia, e passou a ter pequnas aventuras sentimentais. Orgulhava-se de ser um homem que dava todo o conforto à família. Deixara o bairro de Fátima, agora morava em Laranjeiras, e sua mulher, frequentava salões de beleza e lojas de moda, interessava-se por decoração e colecionava bibelôs. A filha estava noiva de um engenheiro da Eletrobrás e ele já encarregara um corretor de arranjar-lhe um sítio - o garoto, que gostava de pescar, esperava que fosse perto de um rio.
     Já não se recordava de Felisberto Barroso como antigamente, embora continuasse lendo o seu nome nos jornais ou vendo-lhe o rosto bochechudo nos programas de televisão. Nunca o visitara, nunca o procurara, nem sequer viera ao seu casamento, quando ainda não era um homem importante, reflexionava. E, de pormenos em pormenor, negava-lhe a qualidade de amigo. Fora apenas uma ilusão. Veio a Revolução. Felisberto Barroso foi preso, exilado, perdeu o mandato de senador e os direitos políticos. Ele experimentou certa satisfação íntima, como se a vida, sua impiedosa cegueira, tivesse corrigido uma injustiça que através dos anos o alvejava. E quando, num almoço num grande grupo no Clube dos Banqueiros, se conversava sobre o governo banido, ele assegurou:
     -Esse Felisberto Barroso é lá de minha terra. Conheço-o desde menino. Aliás - e sorriu maliciosamente - sou um pouquinho culpado pelos males que ele praticou no Brasil, pois o salvei uma vez de morrer afogado. - Cravou o garfo no bife mal passado e continuou - conheço-o desde menino. Não é flor que se cheire.
     E queixou-se do bife: carne dura.


Em: O Flautim, Lêdo Ivo. Bloch Editores, Rio de Janeiro 1966, págs.15-22

Imagem: Meninos pulando carniça, Portinari 1957


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