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O Quarto Anjo, conto de José Eduardo Agualusa

     Após criar o primeiro anjo, Deus ofereceu-lhe um poderoso par de asas. Explicou-lhe que aquilo era mais um aparato de fé do que de voo.

– Os pássaros – assegurou-lhe – voam por convicção.

O anjo viu como voavam os pássaros, batendo as asas e recolhendo as pernas, e imitou-os. Ao fim de cinco meses tinha ganho uma certa prática e até já conseguia fazer algumas piruetas, incluindo voo picado seguido de um duplo mortal invertido. Não era ainda uma águia, mas também não poderia ser confundido com uma galinha. Enfim, voava.
– Agora tira-as. – Disse-lhe então Deus, que o observara, em silêncio, a uma distância discreta, durante todos aqueles dias. – Tira as asas e voa.
O anjo olhou para Ele incrédulo. Protestou:
– E eu lá sou doido, ó Deus?! Tiro porra nenhuma!
Deus, o qual, como se sabe, é brasileiro, não estranhou nem que o anjo falasse português, nem sequer o forte sotaque carioca. A língua e o sotaque, aprendera-as com Ele. Compreendeu, todavia, que lhe faltava o essencial, a fé, além de uma educação um pouco mais esmerada, pois, bem vistas as coisas, tratava-se de um anjo, ainda que numa fase de iniciação, e num rápido gesto de enfado, descriou-o.
O segundo anjo era, sem dúvida, um sujeito mais cordato e delicado. Muito loiro e frágil. Muitíssimo anjo. Tinha uma cabeleira comprida, que gostava de trazer sempre limpa e entrançada, num gracioso rabo-de-cavalo. Aprendeu a voar mais depressa do que o primeiro, com uma técnica original, que deixava os pássaros envergonhados. Porém, quando Deus lhe pediu que tirasse as asas e se lançasse assim, inteiramente nu, de um penhasco altíssimo, também ele recusou.
– Ai Deus! Saiba o Senhor que isso eu não faço. Com o seu perdão, faço qualquer coisa, qualquer coisa, entende?, faço qualquer coisa, mas isso não faço, não.
Disse aquilo com voz trémula e humilde, sem sombra de arrogância, de forma que o Criador se apiedou dele e o deixou ir. O anjo pintou as asas de cor-de-rosa choque e juntou-se a um bando de flamingos. Dizem que ainda hoje é possível ver, em certos crepúsculos inflamados, nalgum palude perdido de África, um anjo voando, com singular elegância, entre uma nuvem de flamingos. Voando e rindo. Eu nunca o vi, mas pode ser.
O terceiro anjo fê-lo Deus mais prático e destemido. Usava um bigode curvo e era respeitoso e de poucas palavras. Voava sem esforço, mas também sem agrado. Pousava nos ramos das mangueiras, ou de outras árvores igualmente altas e frondosas, e era capaz de ficar por ali, sentado, tardes inteiras, a cofiar o forte bigode, a comer mangas e a fruir a sombra fresca e o canto das aves. Quando Deus lhe pediu que subisse ao penhasco e que tirasse as asas e saltasse, não o contestou. Não disse nada. Voou até ao penhasco, tirou as asas e saltou. Ficou claro, naquele trágico instante, que o que lhe sobrava em disciplina faltava-lhe em fé. Ou melhor, como Deus lhe tentou explicar enquanto ele caía, vertiginosamente, de encontro ao gume feroz das rochas, lá muito em baixo, o problema é que colocara toda a sua fé no instrumento ao invés de a colocar no objetivo. O impacto foi devastador.
O Senhor Deus ficou desgostoso com o novo desaire. Levou muito tempo a recuperar-se. Por fim tentou de novo. Saiu-lhe, à quarta tentativa, um anjo alegre, até um pouco simplório, que gostava sobretudo de cantar e de dançar, artes, aliás, que ele próprio havia inventado. Para voar não parecia possuir grande talento. Todavia, quando Deus lhe sugeriu que tirasse as asas e tentasse voar sem elas, usando o esforço da fé, ele apenas perguntou, atordoado:
– E é possível?
Depois largou as asas, espreitou o fundo abismo, fechou os olhos, e imaginou que por dentro do seu corpo outras asas se desenrolavam e batiam. Foi com essas, um tanto torto, um outro tanto tonto, que se ergueu no céu.
Deus alegrou-se. Depois dele fez muitos outros anjos, legiões e legiões, mas poucos, muito poucos foram capazes de imitar o número quatro. Diz-se que esse anjo sem asas se passeia entre nós, como uma espécie de agente secreto. Um observador num campo de batalha. Uma testemunha incógnita.
Provavelmente o anjo número dois é mais feliz.

 

Agualusa In A educação sentimental dos pássaros

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