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Conto de Verão Número 2: Bandeira Branca, Luís Fernando Veríssimo


    Ele: tirolês. Ela: odalisca. Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo montinho de confete, serpentina poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
     Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egipcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
     Só no terceiro carnaval se falaram.
     - Como é teu nome?
     - Janice. E o teu?
     - Píndaro.
     - O quê?!
     - Píndaro.
     - Que nome!
     Ele de legionário romano, ela de índia americana.
     Só no sétimo baile (Pirata, chinesa) desvendarm o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
     - Ah!
     Foi o ano em que ele preferiu ficar na sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do "Bandeira Branca", ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio dos salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse "Até o Carnaval que vem"e saiu correndo.
     No baile do ano em que completaram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
     - Me dá alguma coisa.
     - O quê?
     - Qualquer coisa.
     - O leque.
     O leque da bailarina. Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
     No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaino desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara o ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. Ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
     -Você vomitou a alma - disse a mãe.
     Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
     Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube - e lá estava ela!!
     - Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
     - Sei lá. Bávara tropical - disse ela, rindo.
     Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque sua avó morrera, logo no Carnaval.
     - E aquela bailarina espanhola?
     - Nem me fala. E o toureiro?
     - Aposentado.
     A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bemuda, finalmente um brasileiro.. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse "Píndaro?!"e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nos pernas, escondidas sob as calças de fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou percebendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos trinta, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos dos primos, principalmente um halterofilsta, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi "pelo menos o meu tirolês era autêntico"e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar "Bandeira Branca" ele se dirigiu para a saida, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo "não vale, você cresceu mais do que eu"e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.

***

     Encontram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse "quase não reconheci você sem fantasias". Ele cistou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora preciso te dizer uma coisa", e ela dissera "no carnaval que vem, no Carnaval que vem" e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como e, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
     - O que você ia me dizer, no outro Carnaval? - perguntou ela.
     - Esqueci - mentiu ele.
     Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil... E todas essas ele pensando: digo ou nãodigo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, "Bandeira Branca", a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu...




Em: 13 dos Melhores Contos de Amor da Literatura Brasileira, org. Rosa Amanda Strausz, Ediouro,2003, págs.75-78.

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