Ele veio silenciosamente. Inclinou-se sobre a minha cama. Seus dedos transparentes quase tocaram no meu ombro: "Raíza, Raíza!" Tinha uma rosa no lugar do rosto, mas o hálito adocicado era de hortelã. Papai você bebeu outra vez! Tive vontade de dizer-lhe. Foi quando senti um perfume moribundo de rosas e lembrei-me então de que ele tinha morrido. Quis abraçá-lo, paizinho, que saudade, que saudade!...
Quando ergui os braços ele já tinha desaparecido. Senti o travesseiro úmido de lágrimas. Contudo, fora um bom sonho. Aúnica coisa estranha era aquela rosa em lugar do rosto, mas assim mesmo cheguei a achar natural vê-lo com a cara desabrochada em pétalas.
Voltei-me para a porta por onde ele entrara. Estava fechada. Na escuridão do quarto, só a porta tinha o contorno marcado pela frincha de luz que se filtrava por baixo: era como a tampa do enorme caixão de um enterrado vivo, acordado com a noite ao redor. E vendo pelas frestas o sol a brilhar lá fora.
Acendi o abajur. Marfa agitou-se ao meu lado.
- Amanheceu?
Dormia seminua, de bruços sobre o travesseiro. Achei-a grande demais. Branca demais naquela meia nudez. Tive ímpetos de jogá-la para fora da cama.
- Precisava beber tanto? Hem?
- Estou podre, compreende? Já é dia?
Verão no Aquário, Lygia Fagundes Telles. Ed. Rocco, 1998, pág. 7
Imagem: Ludwig Casimir Marcoussis, para a capa da edição de 1998
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