Pular para o conteúdo principal

Assim Começa o Livro Que Eu Comecei

 1 - OS ARGONAUTAS


"OS ÓRFÃOS DA TEMPESTADE"


     Medonho desastre. Perdido na procela, o avião precipitou-se no mar, a pouca distância da costa da Flórida. Era noite fechada quando as lanchas de serviço de salvamento da marinha norte-americana chegaram ao lical do sinistro. E ali, sob a chuva, na negra noite, começaram a pescar os cadáveres de passageiros e tripulantes. O primeiro a aparecer foi o da Princesa Hindu, que sorria com uma estrêla-do-mar aninhada entre os seios. O gordo Homem de Negócios boiava abandonado, como um fôfo boneco de borracha, e em sua bôca aberta mexia-se um caranguejo. Vieram outros. O moço de Bordo com uma medusa na testa. A Americana Loura com os cabelos soltos e olhos vidrados... O Comandante todo condecorado de anêmonas... Tinham os braços enredados em algas, e a morte lhes pintara nos rostos as côres mais doidas. Por fim ficaram faltando apenas os corpos dos brasileiros. Holofotos eflitos varejavam as águas. Longe, cintilavam as luzes de Miami. A chuva caía, o mar gemia, o vento dizia - nunca mais, nunca mais, nunca mais... E assim uivando foi-se continente a dentro, rumo do outro oceano e das luminosas terras da Califórnia, para onde havia poucas horas fugira também o pensamento e o desejo de muitos passageiros daquele trágico avião. Nunca mais...
     Vi quando pescaram meu próprio cadáver. Meu rosto estava esverdinhado à luz dos holofotes. Como um estranho peixe fui içado para bordo e atirado para o fundo da lancha, como uma coisa sem dono nem serventia.No fundo da minha memória, antepassados fatalistas murmuravam:"Morreu?Acabou-se."

......................................................................................................................................................................

     Imaginação é coisa do diabo. De mil modos já fantasiei o desastre. Já li em cem jornais e de cem maneiras diferentes a notícia do sinistro.
     Faz quatro dias que entramos neste gafanhoto de alumínio que pulou do Rio para Recife, de Recife para Belém d Belém para Port of Spain e que agora se aproxima de Miami., São seis da tarde de sete de setembro de 1943. Voamos sôbre o mar a uns mil metros de altura, e já avistamos terra. É o fim da viagem, mas para nós bem pode ser também o fim de tudo, pois uma tremenda tempestade está prestes a desencadear-se. Visto através da janelinha do avião, o mindo é um quadro lúgubre pintado em tons sépia, negr e mêdo. Nuvens descomunais, pesadas e escuras, cobrem o céu. Há no ar carregado de eletricidade alllgo sulfuroso e mau, de pressago e opressivo. Relâmpagos clareiam o horizonte, refletindo-se no mar, onde já se avistam as ilhas de Coral da costa da Flórida.
     Volto a cabeça e passo em revista a família. No rosto de minha mulher e d meus filhos vejo refletido o verde da tempestade, da náusea e do pavor. São três caras lívidas e ansiosas. Sorrio para elas, mas obtenho como resposta apenas olhares de interrogação e dúvida.
     O Homem de Negócios cochila a meu lado,com a cabeça quase a tocar-me o ombro. No fundo do avião a Princesa Hindu sorri enigmàticamente. Embarcou na Guiana Holandesa, é dum moreno bronzeado. tem uma face de ídolo oriental e está vestida de branco, com um vaporoso véu a escorrer-lhe pelos ombros. Talvez não seja nobre nem tenha nascido na Índia, mas está claro que não vou perder esta rara oportunidade de meter uma princesa hindu na minha história.
     Os outros passageiros preparam-se para descer. A Americana Loura trata de apaziguar o seu baby rosado, que choraminga e esperneia. O calor aumentou; em vão busco alívio, aproximando o rosto dos renovadores de ar.
     A trovoada estala. Parece um sinal para qua as nuvens se rasguem e abram para a cena do Juízo Final. Chegou a hora - penso - chegou a negra hora. Sempre achei que êstes saltos sôbre o oceano, de ilha em ilha, eram um desafio ao Destino. Não se pode fazer uma coisa dessas impunemente... Os relâmpagos se sucedem. O baby chora assustado. O Homem de Negócios desperta, e seus olhos piscam quase em pânico. A trovoada continua. E aqui vamos, encerrados nesta cápsula pra reada que avança impávida na direção de tormenta. O rosto dos motores parece uma ampliação descomunal do pulsar dêstes vinte corações internacionais.
     Lembro-me de um dramalhãi que li ou vi quando adolescente - "As Órfãs da Tempestade". Sim, nós somos os órfãos da tempestade. Estamos à mercê dos ventos e da sorte, desligados da terra e das criaturas...
     Que idéias estarão passando pela mente dos outros membros da família? Olho furtivamente para Luiz, que aperta o nariz contra o vidro da janela. Decerto imagina que vai bombardear Tóquio no seu "Libertador". Dentro em pouco os "Zeros"japoneses estarão enxameando como vespas assanhadas ao redor do bombardeio, e Luiz os irá darribando, um por um, com rajadas de metralhadora. Grande proeza! Soltará uma bomba em cima do palácio do Imperador, e depois voltará à sa base, para uma orgia de coca-cola.
     Clara, de olhos parados e brilhantes, naturalmente imagina-se chegando a Miami, ao som duma banda de música. O prefeito, de fraque e chapéu alto, recebe-a com um discurso; ela fica tôda ofegante e aflita, pporque não sabe uma palavra de inglês. Mas Margaret O'Brien, que lhe trouxe uma braçada de flores, pergunta-lhe milagrosamente, em claro pportuguês, se a viagem foi boa e se os meninos brasileiros gostma de ice-cream...
     Quanto a minha mulher, não é difícil imaginar o que está pensando. Pálida, de olhos cerrados, Mariana decerto faz a si mesma perguntas que ficam sem resposta. Chegaremos vivos e inteiros? Que será de nós nessa terra estranha onde não existem criadas? Onde iremos morar? Quem serão os nossos amigos? Como irei me arranjar nos mercados e nas lojas se de inglês não sei mais que dias palavras - yes e no?
     Agora voamos já por sôbre terras dos Estados Unidos. Lá em baixo, branca e rasa, Miami parece um cemitério.
     O letreiro à nossa frente se ilumina: Afivelem os cintos. Proibido fumar. Obedecemos. O avião começa a perder altura. Sinto essa manobra nos ouvidos e no peito...

A Volta do Gato Preto, Érico Veríssimo. Ed.Globo,coleção Catavento. Rio de Janeiro 1961, págs.1-3

Nota (1): este romance foi lançado em 1946. O  blog manteve a grafia original.
Nota (2): Érico Veríssimo foi aos USA pela primeira vez em 1941 onde passou 2 meses. É desta viagem que ela escreve Gato Preto Em Campo de Neve.  
Em 1943, decepcionado com a ditadura de Getúlio Vargas e aceitando convite do governo americano, volta ao país e mora lá por dois anos. É dessa estada nos USA, que ele escreve A Volta do Gato Preto, cujo início transcrevi acima mantendo o português como se escrevia naquela época.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Aprenda a Chamar a Polícia, Luis Fernando Veríssimo

          Eu tenho o sono muito leve, e numa noite dessas notei que havia alguém andando sorrateiramente no quintal de casa. Levantei em silêncio e fiquei acompanhando os leves ruídos que vinham lá de fora, até ver uma silhueta passando pela janela do banheiro.                   Como minha casa era muito segura, com  grades nas janelas e trancas internas nas portas, não fiquei muito preocupado, mas era claro que eu não ia deixar um ladrão ali,espiando tranquilamente. Liguei baixinho para a polícia, informei a situação e o meu endereço. Perguntaram- me se o ladrão estava armado ou se já estava no interior da casa.            Esclareci que não e disseram-me que não havia nenhuma viatura por perto para ajudar, mas que iriam mandar alguém assim que fosse possível. Um minuto depois liguei de novo e disse com a voz calma: - Oi, eu liguei há pouco porque tinha alguém no meu quintal. Não precisa mais ter pressa. Eu já matei o ladrão com um tiro da escopeta calibre 12, que tenho guard