Parte da minha história terminou ali, naquele dia, naquela hora. A campaninha tocou. Tudo o que eu queria, até então, era ser uma boa dona de casa, garantir a saúde, a felicidade e o bem-estar do meu marido e dos meus filhos. Estava satisteita com a vida que levava.
Preparava o almoço quando alguém tocou a campainha. Pensei: ai, meu deus, logo agora, que hora mais inconveniente para se fazer uma visita. Mas eu não estava esperando ninguém, e minhas vizinhas eram iguais a mim, todas entendíamos que as atividades sociais não deviam interderir no trabalho principal de dona de casa. Sendo assim, reuniões, visitas, nada disso podia ser desculpa para atrasar o almoço, que precisaria estar pronto quando o marido e os filhos chegassem.
Terminei de temperar a carne, coloquei a tampa da pressão. desliguei o rádio. Ouvira, há pouco, a notícia da morte de um padre. Um tal de padre Henrique. O corpo fora encontrado num terreno baldio, na Cidade Universitária. Ele tinha uma corda enrolada no pescoço e três tiros na cabeça.
Não fiz nenhuma associação, nem raciocinei, tudo o que eu queria era apressar o almoço. Afobada, fui atender a pessoa, que tocava a campainha com insistência. Nem deu tempo de tirar o avental.
- Bom dia, senhor.
Era um homem de meia-idade, baixinho, obeso, paletó amarrotado. Tinha uma maleta do tipo 007. Ele me olhou de cima a baixo, depois voltou a me encarar..
- Deolinda Marques Guedes?
- Pois não.
Falou baixo sem tirar os olhos de mim:
- Ontem à noite a senhora estava ali...
Apontou para o canto do jardim, que ficava na frente da casa. Um muro pequeno separava o jardim da calçada.
- Ficou muito tempo, recostava naquela mureta, olhando para a rua...
Ele falava baixo, como se nãom quisesse ser ouvidonpor mais ninguém. Eu realmente tinha estado ali, onde ele dizia. Gelei, fiquei em silêncio. Como sabia?
- A senhora viu tudo.
Fez um breve silêncio, pigarreou. Ele exalava um cheiro forte, suor e cigarro.O olhar me intimidava.
- A senhora viu absolutamente tudo.
Não sabia o que responder.
- Quem é o senhor?
Estava visivelmente nervosa, tanto pela surpresa, quanto pelo tom. E pela aparência dele. Calmo, ou calculista, mas acusador. Eu já estava assustada, sem entender direito a situação:
- Mas o que foi que eu vi? Do que o senhor está falando?
Sem tirar os olhos de mim, ele avançou um pouco, o que me forçou a sair da frente. Estávamos na soleira da porta e ele entrou na minha casa sem ser convidado.
- Não é assunto para a gente falar na porta de entrada da casa. Só me restava entrar também, aflita. Havia uma expectativa, algo meio violento na sia postura, que eu não saberia dizer ao certo o que era. Mas havia.
- A senhora não precisa ter receio de mim. Por enquanto.
- Senhor, estou sozinha em casa. Sou casada...
Eu gaguejava, tremia. A voz, quase um choro.
- Eu sei. Já sei o horário de todos na casa.
- Sabe? O que o senhor quer?
- Vamos deixar de conversa. direto ao assunto. Vou lhe dizer o que a senhora viu. Ja que parece ter esquecido, de ontem à noite para agora. A senhora viu uma Rural Willys verde e branca estacionada na calçada, do outro lado de sua casa.
Era para dizer que sim ou que não?
- A senhora viu mais. tinha quatro homens dentro.
- Moço, o que o senhor quer de mim? Estou ocupada com a cozinha, tenho comida no fogo.
- Viu também quando o padre saiu da casa de sua vizinha. Viu ou não viu?
Claro que sim. Tinha o hábito de, após colocar as crianças para dormir e o marido ficar lendo as revistas no quarto, sair para não ficar incomodando. Às vezes eu o irritava com perguntas, com reclamações ou com assuntos que não eram de seu interesse.
Aquele momento de ler revistas era sagrado para meu esposo, e eu ia para o jardim. Passava horas me distraindo, recostada na mureta, pensando na vida, olhando o movimento da rua, que era quase zero.
Na noite anterior, aconteceu algo muiro estranho. O carro estacionou e ficou parado ali, com aqueles homens dentro, como se esperassem alguém. Não dei muita importância. Lá pelas nove horas, o padre saiu da casa dos meus vizinhos e se dirigiu ao ponto de ônibus, que ficava um pouco mais adiante, na mesma calçada. A rua estava deserta, a iluminação também nunca fora boa. Meio na penumbra.
Certa vez a minha vizinha falou que o padre tinha um trabalho de evangelização e visitava, sempre que podia, as famílias dos alunos. Mas falava-se à boca miúda que ele era desses padres modernos, com ideias avançadas, metido a comunista. Não sei, não posso dizer.
Enquanto ele se dirigia para o pnto de ônibus, dois homens desceram da Rural Willys. Foi então que deu para perceber, era um homem feito e umgaroto. Logo, na Rural Willys estariam três homens e um garoto. Os que desceram alcançaram o padre, falaram qualquer coisa que eu não pude ouvir. E vieram andando de volta para o carro rapidamente.
Primeiro, o padre entrou na Rural Willys. Depois, os dois. O carro partiu.
- A senhora viu tudo. Mas vou lhe dar um conselho, esqueça o que viu.
Eu mal conseguia respirar. Ele apertou com força o meu braço, me olhava com raiva.
- Entendeu? Não viu nada. fui claro?
Soltou-me. Olhou um pouco mais para a sala, como se estivesse procurando alguma coisa.
Lembrei-me da notícia que acabara de ouvir no rádio
- Antes que eu me esqueça. Seu marido, Rinaldo Guedes Gondra, é um homem de negócios. Você deseja o sucesso dele. Quer ser esposa de um homem de alta potência.
- O que tem o meu esposo?
- Ele tanto pode continuar crescendo profissionalmente quanto ser demitido da repartição. pior, poderá sofrer um acidente também.
- Deixe Rinaldo em paz.
- Os seus dois filhos, Leonardo e Helaine, também podem ser levados da Escola Dom Vital para dar um passeiozinho...
Ele riu sarcástico. Coloquei a mão na boca. Comecei a chorar, as lágrimas escorrendo, eu não conseguia me controlar. Ele sabia de tudo da minha família.
- Depende da senhora, da sua capacidade de ficar calada...
Deu meia volta, iria embora. Quando alcançou a porta, eu continuava paralizada na sala. Ele girou a maçaneta, para sair.
- Nem um pio! Com ninguém.
Antes de a porta se fechar e ele pegar o caminho da rua:
- Não diga sequer ao seu esposo que eu estive aqui. Por que, se eu voltar, não será para uma visita de cortesia.
Foi embora, com seu cabelo horrível, os dentes amarelados, o hálito podre. Um verme, de aparência doentia, barriga enorme. Tive forças para ir até a janela, olhar pelo baculante. Ele seguia apressado na calçada, com sua maleta.
Voltei para dentro de casa. Não conseguia mais raciocinar. A panela de pressão parecia que iria explodir. Minha cabeça também.
Tive uma crise nervosa, perdi a fala, fui internada, passei a viver com remédios controlados. Só voltei a falar meses depois, mas o medo de minhas lembranças levara anos para su;erar. Eu tinha medo de lembrar.
Tudo o que se referia ao passado me causava pânico. fiquei com fobia de memória. Era como se o homem da maleta estivesse dentro de minha cabeça: eu não vi nada, não sei nada. E não devo falar. Nada.
Em: O Livro das Personagens Esquecidas, Cícero Belmar. Ed. CEPE, Recife 2022, págs.19-23
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