(...) Só havia um problema com o avô.Por vezes esquecia coisas
A princípio, não era nada de mais.
Depois comecei a dar conta
Coisas pequenas, a princípio.
"Onde pus a chata da caneta?"
"Mas onde diabos deixei eu a caneta?"
Uma vez o avô enganou-se na rua.
Outra vez, enganou-se no meu nome.
Outra vez, o avô de esqueceu-se do caminho para casa.
Fui eu que tive de o levar.
Até que um dia perguntei:
"O que tem o avô?"
Os meus pais hesitavam em dizer.
Não era por mal.
Os crescidos nem sempre sabem o que dizer a uma criança.
E acabei por ser eu a responder:
" O avô tem uma borracha na cabeça!"
(...)
As borrachas apagam coisas
E a cabeça do meu avô apagava coisas.
As coisas dele. A vida dele.
A ele.
A nós.
(...)
Eu não podia deixar isso acontecer.
Eu precisava de fazer alguma coisa.
E foi então que tive uma ideia.
Trabalhei a noite toda com afinco.
No dia seguinte,
os meus pais ficaram surpreendidos
por me verem acordado tão cedo.
"O que estás a fazer?"
( perguntaram.)
"Estou a remendar as memórias do avô!"
"No casamento. Na tropa. Na escola. Ao colo da minha mãe...
E escrevi e desenhei
tudo o que pude.
Durante dias, semanas, meses.
A juventude do avô.
A vida do avô.
E, por fim, o avô e eu.
(As nossas aventuras. No jardim a dar de comer aos patinhos.
No Jardim Zoológico, a ver os golfinhos. A jogar às damas. A ver livros na feira do livro...)
O avô tem uma borracha na cabeça?
Pois nós somos um lápis!
Quem é Rui Zink?
Rui Zink nasceu em Lisboa em 1961. Além de escritor e professor na NOVA FCSH, é membro fundador dos Felizes da Fé e da ACA-M. Autor de uma obra diversificada, do romance à banda desenhada, passando pelo ensaio ou literatura infantil, publicou títulos como o Hotel Lusitano (1986), Apocalipse Nau (1996), O Suplente (2000), O Anibaleitor (2011), Manual do Bom Fascista (2019) e O avô tem uma borracha na cabeça (2020).
Veja aqui obras do autor do poema acima.
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