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O Ladrão, Moacyr Scliar

     
     Quem descobriu o ladrão na garage foi o meu irmão mais moço. Veio correndo nos contar, e a princípio não queríamos acreditar, porque embora nossa casa ficasse num bairro distante e fosse meio isolada, era uma quinta-feira à tarde e nós não podíamos admitir que um ladrão viesse nos roubar à luz do dia. em todo caso fomos lá.
     Espiamos por um frincha da porta, e de fato lá estava o ladrão, um velhinho magro - mas não estava roubando nada, estava olhando os trastes da garage ( que era mais um depósito, porque  há tempo não tínhamos mais carro). Rindo baixinho e nos entendendo por sinais nós o trancamos ali.
     À noite voltou a mãe. Chegou cansada, como sempre - desde a morte do pai trabalhava como costureira - e resmungando. Que é que vocês andaram fazendo? - perguntou, desconfiada - vocês estão rindo muito. Não é nada, mãe, respondemos, nós os quatro ( o mais velho com doze anos). Não estamos rindo de nada.
     Naquela noite não deu para fazer nada com o ladrão, porque a mãe tinha o sono leve. Mas espiávamos pela janela do quarto, víamos que a porta da garage continuava trancada - e aquilo nos animava barbaridade. Mal podíamos  esperar que amanhecesse - mas enfim amanheceu, a mãe foi trabalhar e a casa ficou só para nós. 
     Corremos para a garage. Olhamos pela frincha e ali estava e velho ladrão, sentado numa poltrona quebrada, muito desanimado. Aí seu ladrão! - gritamos. Levantou-se assustado. Abram, gente - pediu quase chorando - me deixem sair, eu prometo que nunca mais volto aqui.
    Claro que nós não íamos abrir e dissemos a ele, nós não vamos abrir. Me dêem um pouco de comida, então - ele disse - estou com muita fome, faz três dias que não como. O que é que tu nos dás em troca, perguntou o  meu irmão mais velho.
     Ficou em silêncio um tempo, depois disse: eu faço mágica para vocês. Mágica! Nos olhamos. Que mágica, perguntamos. Ele: eu transformo coisas no que vocês quiserem.
Meu irmão mais velho, que era muito desconfiando, resolveu tirar a limpo aquela história. Enfiou uma varinha pela frincha e disse: transforma essa varinha num bicho. Esperem um pouco - disse o velho numa voz sumida.
     Esperamos. Daí a pouco, espremendo-se pela frincha, apareceu um camundongo. É meu - gritou o caçula, e se apossou do ratinho. Rindo do guri, trouxemos uma fatia fatia de pão para o velho.
    Nos dias que se seguiram ele transformou muitas coisas - tampinhas de garrafa em moedas, um prego em  relógio (velho, não funcionava) - assim por diante. Mas veio o dia em que batemos à porta da garage e ele não respondeu. Espiávamos pela frincha, não víamos ninguém. Meu irmão mais velho - esperem aqui, - vocês  - abriu a porta com toda cautela. Entrou pôs-se a procurar o ladrão entre os trastes:
     - Pneu velho, não é ele... Colchão rasgado, não é ele...
     Enfim, não o achou, e esquecemos a história. Eu, particularmente, fiquei com certas dúvidas: pneu velho, não era ele?

Scliar, Moacir. Para Gostar de Ler, Vol. 13 histórias Divertidas, Ed.Ática,2002, págs 98-99

Caricatura de Hugo Enio Braz  

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