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A Dama do Leque, Marina Colasanti

    Era uma dama de quimono que vivia na superfície pregueada de um leque de papel. não vivia sozinha. Pousada de trás dela, uma garça cravava a longa perna de coral na água de um lago. Enquanto no canto esquerdo, outra garça voava.
     Sem chuva ou neve que viessem alterar a paisagem, sem frutos que substituíssem as flores do pessegueiro, a dama e suas garças pareciam paradas no tempo. Mas paradas não estavam. O tempo passava no leque, embora a seu modo. Pois cada vez que o seu dono, um velho mandarim, o fechava num estalo seco, fazia-se noite entre as dobraduras. A dama então dormia. Dormiam as garças. E até os nenúfares do lago pareciam repousar suas pétalas sobre a água. Somente o vulcão, ao fundo, continuava soltando um fio de fumaça.
   Bastava, porém, que o mandarim abrisse outra vez o leque, para que todos despertassem. As pequenas ondas do lago brilhavam como se algum vento lhes chegasse das montanhas. Voava a garça sem sair do lugar. A dama de longos cabelos tocava o instrumento que tinha sobre os joelhos, tangendo as cordas com dedos pálidos.
     Que calorento era aquele mandarim! A todo momento, rraac! abria o leque, abrindo com ele os olhos da dama e das suas garças.
     E que nervoso! mal havia se abanado, já fechava o leque novamente, empunhando-o como se fosse um cetro e trancando na escuridão suas personagens.
    Abre e acorda, fecha e dorme, a vida no leque era feita de rápidas noites e brevíssimos dias. Sem que sobrasse tempo para o tédio.
     E assim teria sido por muitos anos, se o mandarim, tomado de amor por sua mais nova concubina e desejando cobri-la de agrados, não lhe tivesse dado o leque de presente.
     Bem outros modos tinha a concubina. Tudo nela era vagar. Nem a atormentava o calor. Do leque, mais que a brisa, agradava-lhe o gesto vagaroso com que o movia, acariciando o ar e o colo. Quase não o fechava. Por cima dele lançava olhares oblíquos. Atrás dele murmurava segredos aos ouvidos das outras concubinas, escondia sorrisos e muxoxos. E muitas vezes, repousando a mão sobre a mesa ou o regaço, esquecia-se de fechá-lo.
     Com ela, os dias tornaram-se longos, às vezes longuíssimos para a dama de quimono. Tocava seu instrumento, olhava as aladas companheiras, e assim se distraía. Porém, as garças, sem nada para fazer, sem poder pescar, trançar ninho ou acasalar-se, começaram a achar o céu de papel cada vez mais limitado, a amplidão além dele cada vez mais tentadora.
     E chegou um dia em que a garça do canto esquerdo, aquela que desde sempre mantinha as asas abertas, agitou-se de leve, depois com mais vigor, e adejando enfim livre, voou para fora do leque.


     Durante aquele dia e nos que se seguiram, a dama esperou por ela, tocando sua doce música. mas a garça não voltou. E o canto esquerdo do leque continuou vazio, sem que sequer uma marca desbotada lembrasse a antiga presença.
     Mais tempo se foi, lentamente. Sozinha, agora, a garça do lago não tinha mais razão para continuar ali, com a perna mergulhada na água. E numa tarde quente em que a concubina se abanava com preguiça, a garça esticou enfim a outra perna, ondulou o pescoço, desdobrando as asas que desde sempre haviam permanecido fechadas. Como uma carola tocada pelo vento, estremeceram as pernas brancas. E a garça abriu seu voo, abandonando o leque.
     Sem um gesto, a dama viu partir a última amiga. Não chorou, porque lágrimas não são permitidas em leques de papel. Mas as mãos pálidas pararam de tanger as cordas. E o instrumento sobre o seu colo emudeceu.
  Muitos e muitos anos de silêncio passaram depois disso. Muitas e muitas pessoas possuíram o leque.
     Até que um dia, vasculhando na barraca de um antiquário de feira, um jovem artista o viu, aberto entre as quinquilharias. E sua atenção foi atraída pela antiga delicadeza da dama de quimono. Faltava alguma coisa, talvez no desenho da paisagem, o papel estava maltratado. Mas eram tão leves as mãos sobre o instrumento, tão elegante as pregas do quimono, que lhe pareceu um lindo presente para dar à sua amada.
     Em casa, limpas as varetas, consertado o papel com pouca cola, o artista sentiu o desejo de acrescentar alguma coisa ao presente, enriquecê-lo com seu amor e seu talento. Pegou a caixa de tintas, debruçou-se sobre o leque, e com cuidado, aproveitando o espaço vazio no lado esquerdo, pintou uma garça colhida em pleno voo, asas abertas. Porém, ocupado com todo aquele canto, algo ficava faltando do outro lado, mais próximo da dama. Mergulhou o pincel na tinta branca, tocou de leve a ponta em cor-de-rosa. E logo outra garça surgiu, asas fechadas, a perna de coral metida na água do lago.
     Sim, agora tinha um leque digno de sua amada.
    E havia ficado tão lindo que ela não quis guarda-lo fechado na gaveta. Cuidando de não ferir o papel, prendeu-o aberto na parede diante de sua cama.
    Aquela noite, ainda olhou com encantamento antes de dormir. Depois apagou a luz e fechou os olhos.
    Dorme a dona do leque, dorme a casa. Mas na superfície de papel um vulcão fumega, enquanto uma dama de quimono toca para suas garças a suavíssima música de um instrumento de cordas.

Colasanti, Marina. Entre a Espada e a Rosa, São Paulo, Ed, Melhoramento 2009, págs 11-15

Imagem: 
Moça com leque
Gustav Klimt
Col. privada
Ano 1917
Óleo sobre tela 


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