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Reconciliação, Marcos Rodrigues


                                                                                             
        
                            Dom Pedro Mourão, bispo da Diocese do Alto Cristalino sabia que São Sebastião do Alto era uma cidade de jovens migrantes. Povo valente que veio do sul para plantar o futuro. Era uma ilha de gente, num imenso mar de soja. Sabia que a cidade se deixara levar por sua juventude e sua riqueza. Sabia também que dinheiro e hormônios não combinam com temperança. São Sebastião, tão pequena, trepidava.

   O que Dom Pedro não sabia é que a alma do padre Borelli, a quem indicara para cuidar da paróquia, não harmonizava com combate à luxúria. Se, no momento da indicação, prestasse atenção nas pálpebras do padre, teria notado que tremiam à medida que ouvia sobre a lascívia que embebia o tecido social da paróquia. Teria notado que o cura abaixava a cabeça em pungente contrição. Mas, bispos não prestam atenção nessas coisas e padre Borelli foi para São Sebastião.

   Chegou num sábado e logo na madrugada de domingo ouviu a turba ao longe. Ritmada, urrava: é hoje só, só, só; vai acabar já, já; aproveita macacada que amanhã não tem mais nada! Ficou assustado, mas logo voltou a dormir. Pensando na vida.

   No princípio a cidade ficou intrigada com o padre. Não por seu tipo siciliano discreto.   Nem por sua voz, que sinalizava indulgência. Mas pelo que deixava sobre sua mesa: um crânio com a inscrição eu fui o que tu és e tu serás o que eu sou. Era seu memento mori, estas coisas simbólicas que, desde Roma, nos lembram que haveremos de morrer e assim nos advertem sobre o viver. Era esta a explicação que oportunamente dava aos que a ele vinham. Mas, é difícil fazer jovens verem que haverão de morrer e, mais ainda, que a morte deve balizar seu viver, pelo temor às punições.

   Com paciência, pe. Borelli foi se inteirando das coisas. No confessionário foi conhecendo a tal lascívia que embebia o tecido social. Ouvia tudo sereno mas, nos temas lúbricos, não resistia. Espreitava pela treliça do confessionário. E assim o calor da cidade foi subindo por suas pernas e, para seu desespero, começou a lhe pegar as gônadas.

   Constatou que aquele crânio sobre sua mesa era pouco para segurar o devasso rebanho.    Como tinha sido pouco para segurar a si próprio, haja vista o filho que deixara em Dourados.

   Assustado com tudo aquilo, anunciou que mandaria entalhar uma grande Dança Macabra, a alegoria medieval em que esqueletos dançam de mãos dadas rumo ao cemitério. Nela, estão representados todos os segmentos da sociedade, desde o peão até o prefeito, indignou-se no sermão. Lembrará a todos nós que do pó viemos e ao pó tornaremos, exaltou-se. Pagaremos, todos, após a morte, o que aqui cometermos, qualquer que seja nossa posição social, nosso ofício, nosso dinheiro, encerrou forte, sempre amargurado por sustentar seu filho com o dinheiro da Igreja.

   A ideia foi boa. Pe. Borelli esperou alguns meses por resultados, mas nada mudou em São Sebastião. Nada. A Dança Macabra efetivamente não assustou ninguém.

   Pe. Borelli então foi mais longe. Deixou escapar a ameaça de que o entalhador retrataria a feição dos grandes pecadores. Aí sim, o padre passou da conta. A iminência e a inevitabilidade de uma dura sentença só fizeram aumentar a devassidão. Foi assim na Peste Negra e foi assim em São Sebastião. A volúpia recrudesceu. Pecaram muito mais e confessaram muito menos. Para desespero do padre, que já havia incorporado a picância do confessionário ao cotidiano de sua vida gris.

   Pe. Borelli passou então à reflexão. Foram três semanas até a iluminação. Decidido, guardou o memento mori, descartou a Dança Macabra e não tocou mais no assunto.

São Sebastião então pegou fogo e o pe. Borelli ardeu junto. Mas, desta vez não teve filho. Graças à Providência, que o levou a tomar suas providências, considerava o padre sempre em reconciliação.

 ( Revista Brasileiros)


*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura

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