Pular para o conteúdo principal

Não Fotografei a Resignação, Regina Porto

     
Imagem: Regina Porto
     Domingo passado fui fazer fotos. Queria registrar qualquer coisa ou cena que, por si, traduzisse uma palavra. Qualquer que fosse.   
     Estive  no marco zero do Recife onde acontecia a feira de cultura japonesa. O pequeno bairro fervilhava com jovens skatistas, crianças de bicicleta e admiradores de mangás. Estes, vestidos a caráter, desfilavam personagens. 
    Por todos os lugares havia quem, sozinho ou em grupo,  vestisse  roupas a  mim incompreensíveis com perucas azuis, amarelas e laranjas. 
   Apesar de caminhar bastante e de ver tanta gente fantasiada o que me chamou a atenção para fotografar foi um casal religioso. Ele, de paletó e gravata, no mesmo lugar onde ficam todos os religiosos pregadores, sob o de sempre sol escaldante,     Tinha perto de si microfone e amplificador. Pregava para plateia nenhuma, virando-se pra um lado e outro. As veias do pescoço dilatadas.  Passei  próximo mas em lado sombreado e vi que com ele estava um senhora de  aparentes 75 anos.  Seguia o pregador. Sua mulher?, Com olhar distante e  movimentos bem contidos, entregava um panfletozinho. 
   Ele exaltado e ela meio que paralisada, ambos torrando no sol. Não consegui fotografá-la apesar de ter nela a imagem perfeita da palavra resignação.
   Lembrei que, ano passado, naquele mesmo lugar e sob o mesmo sol causticante encontrei um pregador que me indicou o caminho do inferno por causa de uma blusa de alcinhas que usava. Por comilança engordei e perdi a blusa. Devo ter perdido o inferno também.   
   A lembrança da má sentença  jogada pra mim mais a postura e fisionomia daquela senhora mexeram tanto comigo que comecei a fazer, mentalmente, a história do casal. E, confesso, eu não estava sendo generosa com o pregador. 
   Fui tirada de minha crônica mental quando um grupo de jovens fantasiados chegou e um deles, com ar bem relaxado, simpático e educado, falou: vou ajudar.  Dito e feito: se pôs a fazer a mímica do religioso e destruiu minha cena de resignação.          Uffa, ainda bem.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A Beleza Total, Carlos Drummond de Andrade.

A beleza de Gertrudes fascinava todo mundo e a própria Gertrudes. Os espelhos pasmavam diante de seu rosto, recusando-se a refletir as pessoas da casa e muito menos as visitas. Não ousavam abranger o corpo inteiro de Gertrudes. Era impossível, de tão belo, e o espelho do banheiro, que se atreveu a isto, partiu-se em mil estilhaços. A moça já não podia sair à rua, pois os veículos paravam à revelia dos condutores, e estes, por sua vez, perdiam toda a capacidade de ação. Houve um engarrafamento monstro, que durou uma semana, embora Gertrudes houvesse voltado logo para casa. O Senado aprovou lei de emergência, proibindo Gertrudes de chegar à janela. A moça vivia confinada num salão em que só penetrava sua mãe, pois o mordomo se suicidara com uma foto de Gertrudes sobre o peito. Gertrudes não podia fazer nada. Nascera assim, este era o seu destino fatal: a extrema beleza. E era feliz, sabendo-se incomparável. Por falta de ar puro, acabou sem condições de vida, e um di

Mãe É Quem Fica, Bruna Estrela

           Mãe é quem fica. Depois que todos vão. Depois que a luz apaga. Depois que todos dormem. Mãe fica.      Às vezes não fica em presença física. Mas mãe sempre fica. Uma vez que você tenha um filho, nunca mais seu coração estará inteiramente onde você estiver. Uma parte sempre fica.      Fica neles. Se eles comeram. Se dormiram na hora certa. Se brincaram como deveriam. Se a professora da escola é gentil. Se o amiguinho parou de bater. Se o pai lembrou de dar o remédio.      Mãe fica. Fica entalada no escorregador do espaço kids, pra brincar com a cria. Fica espremida no canto da cama de madrugada pra se certificar que a tosse melhorou. Fica com o resto da comida do filho, pra não perder mais tempo cozinhando.      É quando a gente fica que nasce a mãe. Na presença inteira. No olhar atento. Nos braços que embalam. No colo que acolhe.      Mãe é quem fica. Quando o chão some sob os pés. Quando todo mundo vai embora.      Quando as certezas se desfazem. Mãe

Os Dentes do Jacaré, Sérgio Capparelli. (poema infantil)

De manhã até a noite, jacaré escova os dentes, escova com muito zelo os do meio e os da frente. – E os dentes de trás, jacaré? De manhã escova os da frente e de tarde os dentes do meio, quando vai escovar os de trás, quase morre de receio. – E os dentes de trás, jacaré? Desejava visitar seu compadre crocodilo mas morria de preguiça: Que bocejos! Que cochilos! – Jacaré, e os dentes de trás? Foi a pergunta que ouviu num sonho que então sonhou, caiu da cama assustado e escovou, escovou, escovou. Sérgio Capparelli  CAPPARELLI, S. Boi da Cara Preta. LP&M, 1983. Leia também: Velho Poema Infantil , de Máximo de Moura Santos.