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O Jogador e Sua Bola, Affonso Romano de Sant' Anna


         A bola não é um mero artefato de couro. É um ser alado, de ouro, ave sagrada, que rompe as traves da gaiola, isto quando não é flor que ao abrir-se em gols nos mostra a luz de sua corola.
         A bola difere do diamante. Não tem arestas. E, no entanto, arisca, risca a pele em ritmo de festa. Não tem arestas porque é polida, não pela mão, mas pelo pé do ourives, caso se chame Garrincha ou Pelé.
         Se na Espanha a bola fosse um  touro, no gol, um toureiro faria da rede a capa ou estola. Mas, sendo no Brasil, ela é samba que o sambista cantarola, é toque na cuíca e caçarola, e a bandeira que o passista na avenida desenrola.    
        O jogador não é só mestre. É aluno que  carrega consigo a escola. E para ele o mundo é a bola. E sendo a bola seu coração, ele sabe  a lição de cor, não cola.
         O jogador é um ator. Ele joga,  encena a paixão no estádio tornando público o seu caso de amor com a bola. Mas pode ser ator dramático ou histrião. Neste caso, o “ ser ou não  ser” é um  chavão.
         A bola é um raio que, quando cai no gol, vira trovão de bombas, gritos e alaridos da multidão.
         A bola também tem uma contradição: pede que a persigam e ri da perseguição.
         O bom jogador é como o cantor: não sabe mais o limite entre sua voz e a canção.
         Ao mau jogador  a bola parece um cactus roliço, um porco-espinho que a canela ou alma esfola. Ataca como um pivete que quando passa não se consegue pegar pelo pescoço ou gola.
         A bola é como o tigre no zoológico da grama. E o jogador é o domador do feroz instante sem usar o chicote ou chama.
         Mais que amante que no campo da cama joga o jogo inaugural, o jogador é a cartomante e sua bola de cristal, jogando com o nosso ser, a nos trazer o bem e o mal.
         Se a bola é bala, o corpo do jogador é a pistola, e, quando atira furioso, o adversário cai e sai de padiola.
         A bola é bela? A bola é a fera que nos abala e desespera? Ou a bola é como a bula, ambígua, veneno e remédio, que nos mata e consola, mulher fatal que nos ama e desola?
         Não, a bola não é a Lua, pálida quimera. Mais que a solitária esfera, a bola é um cometa, que de quatro em quatro anos nos assola.
         Pensamos olhar a bola, mas a bola com seu olho é que nos olha.
         A bola é como a Terra: redonda e humana. É como o homem: cheia de ar , inflada ânsia. A bola é nossa errância.
         A bola não é coisa de adulto. É o que sobrou da infância.
         Se o campo é um  labirinto de pernas, a bola é um fio de novelo que desenrola. Nos foi dado por Ariadne, contra o Minotauro e a degola.
         O jogador é um prestidigitador, que na última hora ante a torcida aflita tira um  gol da cartola.
         Também um ilusionista, coisa de artista de circo, que faz da bola argola, causando no  estádio espanto, e sobre a cabeça do atleta a bola se faz de auréola fazendo do homem um santo.
         O jogador, enfim, é um  escritor. Ele joga com o instante e a glória. Tem os pés no chão e a cabeça nas nuvens, para cabecear a história.

         O jogador é um  poeta.- E como poeta, um fingidor. E joga tão perfeitamente que nos faz pensar que é poesia o que é jogo

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