Quem vai acreditar em incêndios espontâneos da floresta? Eu sofro as minhas dúvidas, porque, sem sair do lugar, levantando apenas os olhos para a janela, vejo essa "espontaneidade" manifestar-se ao mesmo tempo em vários pontos da mata que reveste - ou revestia- este grande bloco de pedra que é o morro Dona Marta. Levanto os olhos porque ouço o crepitar do fogo: e as labaredas já correm por todos os lados, envolvem as árvores com sus fitas vermelhas e amarelas; depois, já não são fitas, mas grandes sudários brilhantes que incham ao vento, palpitam, dilatam-se, rompem-se, atiram-se a outras inúteis, correm pelas ervas baixas, vão mais longe e mais longe, levando nuvens negras que o vento dispersa. As cinzas vêm cair em pedaços na minha varanda. A passarada, sonora de medo, trêmula e sussurrante, procura outras árvores, que não estejam a arder.
E como este fogo anda em volta dos arranha-céus que já foram instalados onde antes a mata verdejava, alguém chama às pressas os bombeiros, e já se ouve a sirena diligente dos carros vermelhos que trazem os bravos soldados. Hoje eu estou pessimista, e acho que, só pelas árvores, ninguém os chamaria. Chamam-nos pelo medo de terem suas moradias queimadas. oh! Deus, esta humanidade está ficando por demais interesseira e insensível!
Então, chegam os bravos soldados do fogo, e que podem fazer? por onde é que vão subir, se o incêndio se alastra, pela encosta, vai cada vez mais longe e mais alto e mais vivo, até esbarrar com a parte escalvada do grande morro? Os bravos soldados olham de longe para esse espetáculo que se repete constantemente. Dentro das transparentes chamas rubras, os pobres arbustos e as belas árvores aparecem como criaturas humanas em sofrimento; já vão perdendo folhas, já se vão reduzindo a delgados esqueletos negros. Há pouco eram formas vivas, pousada de pássaros,alegria do vento. E ali estão, sem possível fuga presas à terra, castigadas pelo incêndio que as devora.
Pergunto-me onde estão as lindas professorinhas que não conversam com seus alunos sobre florestas,chuvas,erosões, ainda que não fosse senão pelo interesse de garantirem água às torneiras de suas casas. Já não me atrevo a pensar em paisagens, belezas naturais, amor por essas criaturas vegetais, repletas de maravilhas e de misteriosos silêncios. Se as crianças amassem as árvores (não se limitassem a plantar alguma pela Primavera, em doce e melancólica rotina), se os homens tivessem respeito por esse mundo que os cerca sem que eles o procurassem entender, não haveria a cada instante ete clamor de sirenas, estas mangueiras desenroladas, esta fadiga dos bravos soldados a lutarem com suas machadinhas, nessas picadas que conduzem ao fogo, à devastação, à morte.
Em redor deste vale, tudo era virante e feliz. Agora, estou vendo a sucessão de estragos: grandes manchas amarelas que assinalam lugares de outros incêndios. Deixa-se passar algum tempo, e nesses lugares começam a aparecer construções, arranha-céus inacessíveis, habitações agarradas à rocha, onde deviam estar belas árvores enormes, tragadas pelo fogo clandestino.
Hoje eu estou mesmo pessimista. Parece-me que os homens estão ficando piores todos os dias. Talvez não seja só para incêndios: eles, porém, são de algum modo simbólicos. Os homens estão voltando à brutalidade e à selvageria. Esta vocação de incendiários deixa-me perplexa. Pensando bem, pergunto-me se a criatura humana, hoje em dia, vale uma árvore. Estou muito pessimista.
(Em: Ilusões do mundo - crônicas)
Lindo texto ha quantos anos escrito? para se analisar o desamor pela natureza
ResponderExcluirFernando Azevedo
Ola, Fernando
ResponderExcluirAinda não sei a data do texto. O livro que contém a crônica teve sua primeira edição em 1976, ela morreu em 64,
Abraço.