Todos os crepúsculos se parecem
Vendo essas velhas árvores recurvas
E êsse lago profundo de água quieta
Emoldurado por samambaias e avencas,
Outros crepúsculos mais tristes
Despertam na ansiedade dos meus olhos:
Os canoeiros passavam cantando na tarde lívida.
A cidade emergia das águas do rio,
Da enchente do rio. Na rua da aurora
Como eram tristes os crepúsculos, baixando
Da solidão do céu na alegria da terra!
E a água do rio - miradouro dos poentes -
Cheia de baronesas e ninféias,
Ia levando para longe o bôjo das canoas
E as varas dos canoeiros mergulhavam
Na água revôlta, ferindo fundo
O coração do grande rio da minha terra.
E vejo no outro lado esbatido da margem
A câmara, o Ginásio e a casa alta
Bem na esquina da Rua Riachuelo
Onde vivi meu tempo amargo de pobreza.
E o rio me recorda outros dias longínquos
Quando as canoas, na calma das noites sem lua
Passavam levando escondida a escuridão eterna
De outras noites, na pele retinta dos pretos,
Dos pretos escravos que meu pai mandava
Para o Ceará que era o país da redenção.
O rio e o mesmo, o ritmo que embala
As águas, ora sujas e barrentas
Ora claras, translúcidas e puras
Como a consciência cristalina
Dos homens antigos da minha terra:
Nabuco,Marrins Júnior, Zé Maria,
João Alfredo,Faellante,Zé Mariano.
Rio da minha terra! Eu te bendigo
Pela unção que em minh'alma derramaste,
Pela poesia que trouxeste das aldeias,
Dos campos floridos, dos sertões distantes.
Canta em ti a cantiga dos monjolos,
O mugido dos bois no cercado do Engenho,
O grito do aboio do vaqueiro errante,
Que vara as caatingas em busca do gado perdido.
As águas encrespam-se agora. De finas e leves
transformam-se em trombas pesadas que avançam
Como serpentes enroscadas. Vão rugindo...
E as vozes agora também se transformam:
É o movimento abolicionista:
Vem do Santa Isabel a imprecação estuante
De gritos, alaridos e blasfêmias
Contra os escravocratas do momento.
E o caudal de entusiasmo atravessa as aldeias,
E penetra os sertões e percorre as cidades,
Levando na fúria das águas selvagens
Milhares de braços que imprecam
E de olhos que choram, pedindo piedade.
Depois a preamar republicana. Ouço o bramido
Que ruge na garganta dos tribunos:
torneios d'Ágora a inflamar a alma do povo.
minha mãe empenhando as suas jóias
Para que se vencesse a eleição de Nabuco.
O verbo do meu Pai prisioneiro
De Floriano na "Revolta". Tudo passa
diante de mim, dentro das cenas familiares.
E o rio na marcha sonâmbula e triste, retinha
No ruído das água tranqüilas as vozes dos homens
[valentes
Que puseram, cantando e chorando, a primeira pedra
No alicerce moral da minha grande terra.
Rio Capibaribe! Eu te mando o meu beijo
Nesse imenso crepúsculo de saudade...
(Do livro: Toda uma vida de poesia -O Enamorado da Vida - 1937)
O blog manteve a grafia original
Imagem: Regina Porto (Ponte Buarque de Macedo)
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