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Menino, Cecília Meireles.

Na próxima sexta-feira dia 7.10, Cecília Meireles faria 112 anos. Pedi e a jornalista Lêda Rivas me disse o que tem na página 112 de um livro que ela tem em casa: 

Menino


Trouxe um menino.
Apanhei-o no bazar de ouro e prata,
onde as joias são como as folhas das mangueiras:
milhares, milhares.

Tudo ensurdecia: pulseiras, campainhas,
brincos e pingentes,
argolas para os tornozelos, correntes com guizos,
enfeites para tranças, corações com pedra sangrenta,
diamantes para a narina.

Mas eu só trouxe a criança.

Apanhei-a entre os carrinhos de comida,
grãos dourados, gomos de cana,
bolinhos fumegantes,
frutos de toda casta,
biscoitos de pistache e rosa,
açúcar em nuvens de algodão.

Trouxe o menino.
Apanhei-o entre mulheres morenas, lânguidas,
sonâmbulas.
Entre velhos de barbas imensas, que recitam versículos.
Entre mercadores distraídos, de cócoras,
que fazem subir e descer douradas balanças.

Montes verdes, azuis, vermelhos: condimentos, colírio,
e óleo de gulab, rosa, rosa,
para as tranças de seda negra.

Trouxe o meninozinho:
tem um sinal de carvão na testa
e furos nas orelhas
para muitos talismãs;
não ouvirá canto de sereia, nem sedução de demônio:
calúnia, mentira, lisonja,
ofensa ou engano das palavras humanas.

Trouxe o meninozinho – mas só na memória.
Menino que vai ser surdo, tão surdo
que jamais saberá deste meu amor.

As palavras rolarão sobre a sua alma
como pérola em veludo, sem qualquer som.

Trouxe o meninozinho nas minhas pálpebras:
um menino oriental, ainda de colo,
com olhos negros circundados de colírio,
um menino que adormece com tinidos de pingentes de prata,
balanços de camelo.
Muito pobre, muito sujinho, de muito longe,
ainda do mundo dos anjos do Oriente:
enrolado em si mesmo,
pensativa crisálida

na confusão do bazar.

(Em: Doze Noturnos de Holanda e Outros Poemas - Ed.Nova Fronteira 1986)

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