Uma carta para não ser lida
Vitória, 15 de dezembro de 2024.
Beatriz,
Hoje acordei decidido. Na minha vida, há algumas pontas ainda sem os devidos nós e tirei o dia parapôr essa tarefa em dia. Resolvi te escrever uma carta que nunca vai ser lida. Isso mesmo, nunca vai ser lida, mesmo porque nunca existiu. Diante de seu silêncio e da minha inação, restou apenas registrar o que aconteceu comigo. Você sequer imagina os fatos que ocorreram e que motivaram alguns escritos, entre eles alguns miseráveis poemas e essa carta.
Encantei-me com você há um certo tempo. Seus olhos e cabelos pretos, seu sorriso apertado nos lábios, um certo grau de miopia e seu jeito extremamente simples, cativante e delicado me encantaram. Foi tudo muito rápido: esse seu jeito despojado de ser e de conduzir a vida encantou-me. Você, Beatriz, irradia simpatia. Meus dias se resumem entre encontros propositalmente provocados, duas trocas de olhares e um sorriso, não mais que isso. Foi tudo que bastou: nunca conversei com você, embora já conheça o timbre de sua voz, delicada como tudo em você.
Meu coração, bobo, mudou o ritmo. Toda vez que você aparece, ele se descompassa. Quase me traio. Sempre me recomponho a tempo de não deixar transparecer meu desejo de me perder no emaranhado dos seus cabelos. As pessoas que me conhecem já estão desconfiadas. Alguém chegou a insinuar que eu estou apaixonado por você. Neguei. Sempre desconverso quando o assunto é você. Entretanto, está ficando cada vez mais difícil de despistar meu olhar perdido, quando fico pensando na possibilidade de te ver.
Sabe Beatriz, estou me sentindo ridículo com tudo isso. Nunca me vi em tal situação, refém de mim mesmo, do meu jeito trancado de levar a vida. Aliás, esta, ultimamente, não tem sido fácil para mim. Mas, a gente vai levando. Você passa por mim de forma despercebida. Indiferente, alheia, distribui simpatia e sorrisos por onde passa. Sempre ganho um, nem preciso ficar na fila, ele vem rápido. Isso faz com que o que sinto por você aumente cada vez mais. A sensação de ser motivo de zombaria por parte dos outros me paralisa, me emudece e me tira a coragem de falar com você. Desculpe, eu sou assim, quase nunca luto pelo que quero.
Há algo que você precisa saber. Escrevi vários poemas a respeito de Beatriz, a passante despercebida. Vários. Malditos poemas, sempre com a mesma temática, na esperança de que, um dia, você, que me tira o sossego, os lesse. Somente esperança, nada mais.
Mas o tempo foi passando rápido. De repente, me vi em uma situação sem volta. Teria que tomar uma decisão. Os poemas já tinham virado uma coletânea. Escrevi textos em prosa, sempre malditos e sobre despercebimentos. Os textos foram se avolumando.
Teve um dia que criei coragem. Fiz uma tentativa de aproximação que não deu certo. Comecei o processo inverso: passei da exposição para o desperceber constante. Em vão. A lógica reversa não funcionou. Alguma coisa aconteceu: ou você não percebeu, ou eu não me expressei bem. Assim, Beatriz, restaram-me apenas os escritos. Antes de rasgá- los, um a um, para não deixar legados, resolvi te escrever uma carta para não ser lida. Assim, encerradas nessa espécie de cápsula do tempo, minhas divagações não seriam conhecidas. Dei início ao processo.
Um a um, os poemas e os textos em prosa foram deixando gavetas vazias e enchendo lixeiras. Tudo sem medidas, em proporções geométricas. Junto ao material que era deitado fora, seguia uma enxurrada de sonhos já sonhados e de sentimentos, que entremeavam os versos nas estrofes. Textos escritos com o que havia de mais original no sentimento de uma pessoa para outra, separadas pela vontade de não saber do outro.
De alma lavada, me livrei dos escritos. Dos sentimentos, eu não sei. Não tenho mais estímulos visuais. Também não posso garantir alheamento, Beatriz, se por acaso eu me encontrar com você novamente. Nem mudarei de calçada, caso isso aconteça. Com um gosto de vingança, vi o lixo sendo posto fora. Era como um expurgo, algo como lavar a alma. Não guardo rancor nem sou indiferente. Também nunca te mandei flores, tampouco bombons. Talvez tivesse feito isso em outra época. Não tenho mais tempo para tentativas. A época dos ensaios destrutivos já passou. Hoje só quero o cheiro de óleo e de gasolina e o vento batendo forte, na cara. Sensação de liberdade, quase asas.
Do quase seu,
Dante
a.c.sampaio
Em resposta vos digo
Vitória, 10 de fevereiro de 2025
Dante,
Embora penses o contrário, é meu dever informar-te de que a discrição não é uma virtude que tu cultivas em grande quantidade. A displicência, o distanciamento e a ingenuidade de meus gestos não representam a falta de conhecimento de teus olhares. Acompanho teus olhos, sinto teus batimentos cardíacos acelerados quando mal me aproximo, encorajo tua presença, constante e distante, quase como displicente.
A indiferença não é outra coisa senão cautela. Há lacunas em minha narrativa, alguns hiatos tão sólidos que os sinto como pedras que me prendem ao fundo de um lago parado, sinto faltar o ar, sinto faltar a vida.
Lamento desconhecer os escritos anteriores que tu eliminaste, rasgando-os na busca por livrar teus pensamentos do limbo em que habitas por minha causa. Esta última carta, que não deveria ser lida, chegou a minhas mãos e não posso ignorar o quanto me inflama a carne.
Eu estava lá, como sempre estive, observando-te a escrever, como sempre esteves. Cativei há tempos, uma cadeira junto ao canto esquerdo, entre as várias fileiras repletas de prateleiras de livros, que me permitia uma visão encoberta o suficiente para observar-te diariamente entrar e sair da biblioteca. Acompanhei-te, movendo-me minimante às sombras, em sua rotina cronometrada e metódica, chegando sempre ao mesmo horário, enquanto sentavas sempre à mesma mesa e cadeira, escrevendo e escrevendo. Até que em uma tarde algo novo alterou a rotina perfeita de teus movimentos. Levantaste-te resoluto, acariciando com doçura e dor o envelope em tuas mãos, mas não o levou, como fazias todas as vezes.
Teu tesouro agora estaria exposto ao mundo, mas me adiantei para resgatá-lo e fazer do teu, o nosso tesouro.
Ao percorrer os olhos pela carta, fiquei alardeada ao saber que esta não deveria ser lida e me vi diante de um impasse dantesco. Ousaria infringir o aviso que me davas ou me arriscaria à leitura? Como sabes, o conhecimento pode ser uma dádiva, assim como pode condenar-nos a carregar conosco algo que poderia ter ficado adormecido. Tomada de impulso, mantive-me firme no propósito de conhecer teu íntimo e compartilhar de tuas angústias.
Dante querido, me atrevo a imprimir aqui uma proximidade que não nos cabe, mas que deveria. Dante. Querido Dante, acalma tuas dores. O caminho que percorremos em paralelo, tu e eu, é pedregoso e seco. Magoa os pés e fere os sentimentos. Mas teu coração é generoso e envaidece-me que seja devotada a mim tal acréscimo de estima.
Um coração nobre como o teu, merece paz, conforto e plumas macias para repousar tua pressa. Não posso dirigir a ti a devoção que mereces, o tempo já é tardio para meus amores. Mas te entrego minhas lágrimas de afeto, meu sorriso encabulado de admiração e de zelo contido. Busca a luz e a inspiração e confias que o amor não é um sentimento que se sente só. O amor é entrega, mas também é partilha, é se doar e receber. Conforta-me saber de teus encantos, mas saiba que meu coração está enrijecido e já não pode oferecer a recompensa que necessitas o teu.
Coloca teus pensamentos em ti, Dante. Coloca teu coração como guia de teus passos e teus olhos como faroletes acessos a iluminar teu caminho entre a névoa. Perdoe meu inoportuno recuar e segue buscando dentro de ti a razão para amares com cada vez mais ardor. O amor que soma e não divide. Estenda tuas asas abertas em direção ao sol e permita que o calor e a umidade se prendam a ti. Explora a luz.
De coração partido, despeço-me do anonimato e te peço perdão por esse sentimento não correspondido em seu tempo. Já não evitarei teus olhos. Receberás em sorriso, minha gratidão e culpa. Estás livre, querido. Vivo.
Da quase amiga, Beatriz
Priscila Aquino
É uma satisfação compartilhar a escrita com meu amigo Alfredo.
ResponderExcluirFantástico, excelente e muito prazeroso escrever com P. Aquino. Agradeço a oportunidade que você me deu ao propor esse desafio. Que venham outras oportunidades!!!
ResponderExcluirDigo o mesmo, Priscila. Experiência fantástica! Obrigado pela oportunidade.
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