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Uma Novela Fora da TV, crônica de José Paulo Cavalcanti

     Cristina procurou um amigo advogado. Não era consulta. Fora só comunicar que iria se suicidar. "Que é isso?, mulher." A escolha de um advogado, para essa comunicação, deu-se apenas por confiar nele.E Não ser alguém da família. Passaram a conversar. Decidira morrer por conta de um telefonema. O doutor estava perplexo. Já vira muitos que desistiram da vida, quase todos em razão de problemas financeiros; ou alguma doença incurável; ou, apenas, por compulsão de alguma neurose. Coisas assim. Não era o caso de agora em que uma mulher estava tranquila e bem. O doutor pediu que contasse o que acontecera, no tal telefonema, para a levar a uma decisão tão drástica. Foi assim.

     Cristina estava em frente à TV. Como sempre. Na novela das oito, mulheres iguais a ele viviam amores impossíveis. Paixões ardentes que jamais Cristina seria capaz de sentir. Distantes de sua vida, que nessas horas lhe parecia banal. Sem nenhuma promessa de futuro. O marido, como em todas as quintas-feiras, estava jogando futebol. Depois era o chope, junto dos amigos. Chegava em casa só perto da meia noite. E deixava, na sala, o tênis cheio de barro. Como sempre. Sem nem se importar que, no dia seguinte, Cristina teria que se abaixar, mesmo com as dores das costas que havia muito sentia. Para pegar os sapatos, lavar e guardar no quarto. E se baixar de novo, pobres costas, para limpar o chão sujo. Como sempre. Cristina olhava para Malu Mader, na telinha; e se via, no futuro, sentindo pena de si própria. À espera da velhice. De ver os filhos crescendo e indo embora. Depois os netos. Sem mais esperanças. Plim-plim, hora dos anúncios.

     Levantou-se do sofá e foi até a cozinha. Abriu a geladeira. Botou água no copo e o telefone tocou. Uma voz masculina, que antes nunca ouvira, começou a falar depressa e num tom angustiado: "Teresa, acredite no nosso amor. A gente ainda pode ser feliz. Estou em frente ao balcão da TAM com duas passagens na mão. Ponha o que puder na mala e venha, que a gente desaparece no mundo.  Se não vier, nunca mais nos veremos. Mas a gente foi feito um para o outro, mulher. Venha por favor. Um beijo."Clique. E Cristina parada, com o copo d'água na mão. Ficou assim, como uma estátua, esperando que o telefone tocasse de novo. Para esclarece o incidente. E nada. Achou graça, por ver que o cidadão errara de número.  Ela era Cristina, e não Teresa. Infelizmente era Cristina. Ou infelizmente  não era Teresa. Nem pensou em ligar para a TAM, pedindo para avisar ao tal cidadão que ele errara o número. E o copo na mão. E o gesto de beber água protelado. Foi quando teve um como  que sonho, ou delírio, ou êxtase, o que tiver sido. Seria o primeiro de três que teria em pé ali mesmo, naquela cozinha.

     Neste primeiro sonho, percebendo a chance de testemunhar um romance real, se esqueceu da TV. Como o telefone que recebera a chamada era fixo, não sabia quem havia ligado para ela. E teve que ir ao aeroporto. encontrou o tal cidadão. Chamava- se Nelson. Explicou que seu nome era Cristina, que ele havia ligado para alguém que se chamava Teresa e pediu para ele conferir o número.  Nelson percebeu, no celular, que trocara mesmo um dígito. Ligou de novo e repetiu.para a Teresa certa, o mesmo discurso que Cristina já ouvira perto da geladeira. Nelson disse a Cristina que lhe devia seu destino. Só que não era bem assim, como logo se veria. Apertaram as mãos. Cristina foi embora.Mas não foi, realmente.  Apenas saiu das vistas de Nelson. E ficou olhando, escondida por detrás das plantas de uns jarros. O coração batendo como se fosse de novo mocinha.  Como se estivesse vendo, ao vivo, uma novela.

     Pouco depois, chegou mulher de meia-idade como ela. deveria ser a tal Teresa. Dirigiu-se a Nelson com passos rápidos, mais parecia soldado marchando, e pôs o dedo no nariz dele. Falou como se estivesse muito irritada. Deu uma rabiçaca e voltou por onde veio. Nelson baixou a cabeça e entrou, solitário, no portão de embarque. Sem olhar para trás. E, se tivesse olhado, varia não apenas Teresa indo embora.Veria também Cristina com um olhar de quem estava com pena dele. Logo Cristina, que tinha tanta pena de si mesma. Foi quando, em seu apartamento, acordou daquele sonho, ou o que tenha sido. Bebeu água. E teve mais um sonho. Com o mesmo começo.

     Encontrou Nelson, disse as mesmas palavras e ele novamente ligou para Teresa. Nem meia hora se passou e apareceu mulher toda risonha. Beijou Nelson ardentemente, Como se fosse o último beijo na vida  dos dois. Tão quente que Cristina ficou vermelha, só em ser testemunha da cena. Ou porque jamais recebera um beijo como aquele, Dirigiram-se, os dois ao balcão da companhia aérea. A mala que a acompanhava foi despachada. Entraram os dois no portão de embarque, juntos. Cristina ainda viu quando se beijaram de novo, demoradamente. Até afinal desaparecerem, de sua vista e de sua vida. Cristina quase chorou. Por causa de si mesma. Então acordou novamente. Pegou o copo já vazio e pôs em cima do fogão. Melhor voltar logo para a sala, que a novela ia recomeçar. Foi quando teve seu terceiro e derradeiro sonho.

     Mais uma vez, o começo era igual. diferente foi que desta vez, esclarecido o engano, depois de ter Nelson ligado, ficaram conversando. O tempo foi passando e a conversa mostrava que os dois eram muito parecidos. E Teresa não vinha. E Nelson cada vez mais gostando da conversa. E Cristina também. Foi quando ele olhou para o relógio e viu que seu tempo de esperar terminara. Só que, por estranho que pudesse parecer, não estava triste. A conversa com Cristina tinha sido tão boa que ele ria, como havia muito não sabia como era. Ela também. Então, como se fosse algo natural, apontou para as passagens que tinha na mão e disse para Cristina: "Vamos juntos?" Cristina hesitou. Perplexa. Não contava com uma proposta dessas. A chance de deixar tudo para trás. De esquecer o passado e viver, intensamente, uma vida nova. Era uma loucura, sabia disso. Iria deixar para trás marido e filhos. Mas a chance de mudar de caminhos acontece apenas uma vez na vida. O coração batia forte. Acelerado. Logo o dela, que já quase desistira de viver. Mas, quando ia dizer que aceitava essa proposta, plim-plim.

     O sonho acabou. Pena, pensou Cristina. Então voltou ao sofá e a seus amores da tela. Só que a novela já não tinha mais os encantos de antes. Murchou. Ou foi Cristina quem murchou. Então viveu outro sonho que não era mais sonho. Era uma visão de sua própria vida. E ficou triste. Ainda mais do que já era. Por ter certeza de que nunca viveria um amor como aquele de Nelson e Teresa. Sabia bem como as coisas iriam acontecer, mais tarde. O sapato, o barro no chão, a dor nas costas. Só que   o futuro ninguém controla. E, naquela noite, o marido chegou mais cedo que de costume. Cristina pressentiu que algo especial estava para acontecer. Diferente de todas as outras noites iguais de antes, ele veio para perto dela e lhe deu um beijo. Pouco importava que o cheiro do chope atrapalhasse o romance, afinal um beijo era sempre um beijo. Sobretudo porque já nem se lembrava do último que recebera. Então o marido olhou para ela com um olhar bem vivo, que lembrava os tempos de namoro, e disse: "Sabe o que eu queria, mulher?"

     Naquele momento mágico, Cristina percebeu que talvez nem tudo estivesse perdido para os dois. Que talvez pudessem recomeçar. Quem sabe viver, agora, um amor melhor. Maduro. Sem a paixão que se via em Nelson e Teresa, claro. Mas, ainda assim, bom. E passou a imaginar o que aconteceria. Que o marido iria convidá-la para ir a Paris, cumprindo uma promessa do passado. Ou voltar a Veneza, onde passaram a lua de mel. Ou ir a um motel, até isto para ela já seria bom. Seu rosto então se iluminou, como fazia muito tempo não se via. E respondeu, ao marido, com a voz mais apaixonada que foi capaz de entoar: "Não, meu amor, o que você quer?" ficou esperando a resposta como se tivesse 18 anos. Mas nem teve tempo de continuar nessa espera. Que o marido, com voz de bêbado, disse apenas: "Eu queria um prato de sopa."

     No dia seguinte, Cristina procurou seu advogado para comunicar o destino que decidira dar a sua vida.

Em: Somente a Verdade, José Paulo Cavalcanti, Ed. Record, 2016, págs.81-86

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